Meu querido velho

Aldo Paes Barreto
Jornalista

Publicado em: 09/08/2024 03:00 Atualizado em: 09/08/2024 04:32

A gente começa a envelhecer quando se olha no espelho e vê os traços do pai. Creio que a descoberta é do colombiano Gabriel Garcia Marques – um feiticeiro inigualável nas artes de contar e de escrever. Incontáveis vezes vi os reflexos do meu pai, em algum espelho pendurado na parede do tempo. Também os meus nove irmãos, meninos e meninas, incluindo as duas que já se foram, devem ter tido essa experiência mágica. Os traços, o gestual, o olhar compenetrado, a face serena; as pequenas e eternas verdades que o rosto revela e a alma entende.

Imagens refletidas, palavras ditas, os modos cerimoniosos e a conduta simples sem afetação.  Coisas simples, domésticas,  o comportamento civilizado. Autodidata, papai era cultor das boas músicas, dos bons livros e da boa educação. Adorava ler. Mantinha pequena biblioteca que foi minha escola e acesso ao Jornalismo.

Quando adolescente, quebrei a perna e permaneci imobilizado por camadas gesso que cobriam a perna. Sem tv, celular, nem pensar, restaram os livros de papai. Das histórias de quadrinhos até, incentivado por ele, descobrir e ler os melhores.  Ele preferia os brasileiros. Tinha mais coisas nossas em José Lins do Rego, Machado de Assis, Gilberto Freyre, dizia. E os jornais. Em São Caetano, quando foi coletor federal, eu tinha a obrigação de apanhar os jornais na estação ferroviária. Ele lia suavemente e repassava para mim esse dever de casa.

Quando fez concurso para o Ministério da Fazenda, em 1939, nomeado para Salgueiro, nos sertões extremos de Pernambuco, papai tinha como meta retornar ao Recife para que os filhos pudessem estudar. E estudaram. Médicos, jornalista, biólogo, professora universitária, advogados, psicóloga. Todos cidadãos e cidadãs dignas, úteis; multiplicadores dos ensinamentos recebidos.

Neste 11 de agosto, ele faria 111 anos e como deveria estar feliz com o sucesso do seu ensinamento. O conhecimento – repetia – é a maior riqueza que alguém pode acumular. Com a vantagem de poder usar, distribuir com todos, sem perder uma única sentença, uma única palavra, um mísero ponto final. Saber é multiplicar, repetia.

A boa educação do Velho estava nos exemplos diários.  Na mesa simples da família numerosa, generosa, presidida por mamãe, onde sempre cabia mais um. Papai não era rigoroso; era exemplar. Jamais o vi como palito dançando na boca; arrotando, urinando de porta aberta ou deixando marcas de sua presença no banheiro. Sentar à mesa sem camisa; falar alto ou usar palavrão em casa; tratar mal as empregadas domésticas, conversar pelos cantos da rua ou tomar uma caninha na barraca da esquina, nem pensar. Gostava de cervejinha gelada. Mas nunca o vi bêbado.

Todo esse comportamento, esse gestual, os ditos e os feitos, continuam no espelho da nossa memória impregnando filhos, netos.  Aposentado e viúvo, aceitou convite de alguns integrantes do Conselho Municipal de Cultura para secretariar a entidade. Ficou pouco tempo. Nem mais um dia depois que o Conselho recebeu visita de destacado enviado do Ministério de Cultura. O cidadão não sabia quem era Manuel Bandeira e pensava que João Cabral de Melo Neto fosse português.

Logo depois dessa nova aposentadoria, o coração envelhecido e cansado o levou ao hospital. Fui encontrá-lo cercado pelos filhos, os biológicos e os três que ajudou a criar com a nova esposa e sempre os apresentavam com enorme orgulho: dois engenheiros e uma médica.

Caminhava lentamente. Pressenti a despedida. À noite, chegou na última página. Apagou a luz e dormiu. Foi embora meu querido velho.

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