Verdade e "verdades"

Manoel Bione
Médico psiquiatra e jornalista

Publicado em: 16/11/2023 03:00 Atualizado em: 15/11/2023 23:16

- Doutor, o Collor e o Reagan estão planejando me matar.
- Como você descobriu isso?
- Deu ontem no Jornal Nacional,
- Eu assisti ao Jornal Nacional e não ouvi nada disso.
- Ah! É porque o senhor não sabe decodificar, mas eu sei.

Essa conversa maluca se deu, em meu consultório, entre mim e um cliente, cuja família me encaminhara. Ele chegou com o diagnóstico de Esquizofrenia Paranoide.

Abri o artigo contando esta historinha real para falar sobre a verdade. Diante dos argumentos desse rapaz, como eu poderia discordar?

“A verdade, meu amor, mora num poço. / É Pilatos lá na Bíblia que nos diz”, cantava Noel Rosa, lá pelos anos 1930. E assim a humanidade vai procurando a tal verdade, como quem corre para pegar o pote de ouro no final do arco-íris ou o sedento que dispara deserto adentro, a fim de saciar sua sede na miragem enganosa.

A apreensão da verdade só é dada aos deuses, aos santos e aos místicos. Mas ela transcende a palavra. Num transe profundo esses seres iluminados podem ter contato com ela. No entanto, ao voltarem ao estado de vigília, não conseguem expressá-la.

A verdade pode ser comparada a um elefante submetido à descrição de um grupo de pessoas cegas (ou, para usar a expressão politicamente correta, “pessoas visualmente prejudicadas). Cada um dos cegos tem uma descrição, que acha que é a verdadeira. O que pegou no rabo diz que um elefante é fino e mole. O que apalpou as pernas do animal garante que é algo grosso e firme. Já o que alisou o corpo do bicho, o descreve como algo imenso e liso. Ou seja, todos estão certos e todos estão errados ao mesmo tempo.

As religiões são mais ou menos assim. Cada uma tem a sua verdade. E tenta impô-la de qualquer modo. Por essas “verdades” muito se matou e se tem matado em nome de Deus. Como o paciente citado na abertura deste artigo, usam-se argumentos irrefutáveis na imposição de cada uma dessas verdades. O rapaz se refere ao Jornal Nacional, que só ele saberia “decodificar”. Mas o que tem sido mais usado em todos os tempos e lugares é a Bíblia Sagrada.


Mas qual Bíblia? pergunto eu. Pois eu imagino que deve haver várias delas. Pois cada um cita a sua, que é a que se presta para ratificar a sua “verdade”. E não caia na besteira de perguntar quem escreveu essa Bíblia. A resposta, certamente, virá de chofre: “Foi Deus!”. E não insista em indagar quem foi que viu “Deus escrevendo a tal Bíblia”, vai se formar uma cadeia de argumentações semelhantes à resposta do meu cliente citado.

Claro que você já deve estar imaginando que estou escrevendo estas mal traçadas, como introdução ao assunto do momento: A invasão da Palestina pelo exército israelense. Bingo! Acertou em cheio. Uma invasão por expansão territorial está sendo classificada, por parte da imprensa, como “guerra religiosa”. O primeiro ministro Netanyahu e seus pares sionistas têm reforçado essa falsa afirmativa.

Seus argumentos são sempre recheados de citações bíblicas. Fala, por exemplo, em uma “terra prometida”, em “povo eleito”, falácias atribuídas a Deus. Então eu pergunto: Que Deus é esse que escolheu um povo que representa apenas 0,2% da população mundial? E foi esse mesmo Deus que autorizou um dos exércitos mais bem armados do planeta a ocupar um país já habitado por outro povo tão antigo quanto seus irmãos genéticos judeus?

Atualmente, Israel ocupa uma área quase 20 vezes maior de quando foi criado nos anos 1947/48. Na época, o mundo estava solidário àquele grupo que sofreu um verdadeiro holocausto. Interessante essa palavra “holocausto”. Ela virou um termo de uso exclusivo dos judeus. Não inclui os 3 milhões de ciganos, os milhares de comunistas, de negros e de outros grupos trucidados pela psicopatia hitlerista.

E o mundo continua assistindo, impotente, a essa pseudoguerra entre a poderosa máquina de extermínio judaico-americana contra os bodoques palestinos. E tudo em nome da “verdade divina”.

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