Diario de Pernambuco
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O pacote memorioso

Rodrigo Pellegrino de Azevedo
Advogado

Publicado em: 16/08/2022 03:00 Atualizado em: 15/08/2022 22:53

Cumpro sempre a “liturgia” de voltar para casa. Essa coisa atávica desde o tempo das cavernas, ritual essencialmente humano, pois todos precisam de uma sua para poder descansar. Numa quinta dessas, chego e encontro na portaria do prédio um misterioso pacote, um embrulho envolto em papel madeira, já um tanto quanto envelhecido e todo colado com fita “Durex” - esse fato denotava o tempo da encomenda. Como costumo receber livros, a priori “escaneei” a memória para identificar se estava faltando receber algumas de minhas mais recentes aquisições e, nada feito, não lembrava.

O endereço do destinatário estava correto, assim como o nome: “Ao jovem Rodrigo Pellegrino de Azevedo”. A tirar pela adjetivação de uma tardia jovialidade (56 anos) pensei logo em brincadeira de alguém íntimo. Viro o embrulho para ver qual o remetente e me deparo com o nome do velho e conhecido Porfírio Rodrigues. Levo um susto, pois não imaginava saber ele meu endereço atual. Recolho o respectivo e subo ao quinto andar reflexivo.

Pacote à mesa, tesoura à mão, recorto cuidadosamente todo invólucro, com medo de danificar o conteúdo. Aliás, esse pacote estava, definitivamente, finalizado há muito tempo (a única coisa nele, atual, era a designação do destinatário e do remetente) e, por sinal, muito bem embrulhado e protegido, como coisa guardada em testamento cerrado.

Impressionante como a memória necessita de gatilhos. Serviço de eclosão feito e me deparo com um livro por mim recebido de Porfírio Rodrigues, há mais de 33 anos. Trata-se da única obra escrita por Urano Lustig, na qual ele tenta desconstruir a filosofia e fundamenta que tudo não passa de literatura e arte. Esse livro me foi entregue em novembro de 1988. Foi naquele dia que vim a conhecer Porfírio Rodrigues, numa fila para receber o autógrafo do livro A Cerveja e seus Mistérios, do professor Antonio Houaiss. Ainda estudante de Direito, fui ao lançamento com os amigos Rubinho Valença, Marcelo Canuto, Juscelino Ferreira e Fernando Matos.

A fila para os autógrafos era grande e não me lembro com quem conversava quando um senhor mais próximo bateu em meu ombro e perguntou: “Não sei o seu nome, mas me permita dizer que o tempo irá engolir todos os seus filhos. Cronos depois de vencedor, quando matou o pai, Urano, em conluio com os irmãos e Gaia, a mãe, também será vencido, e até Zeus, seu filho preservado e salvo, também terá que abrir-se para que nasça Atena.” A forma inusitada de se apresentar chamou a minha atenção, algo nada trivial para uma fila de autógrafos. Não imaginem na intervenção dele algo eivado de boçalidade, ao contrário, foi mais que pertinente naquele momento ao grupo de jovens uma tanto quanto arrogantes e ruidosos para o ambiente.

Ato contínuo ao que me falara, respondi que haveria um materialismo histórico inevitável e que tudo teria um percurso determinado até que a sociedade se apresentasse cordial e igual, um mundo onde os homens seriam valorizados pelo seu valor e bondade, e não como mercadoria (lembrar disso hoje me causa vertigem, mas sem problemas), e foi quando Porfírio me ofereceu esse livro de Urano Lustig, retornado a mim, agora, após mais de trinta anos: Everything is a Human Invention.

E o fantástico de receber esse livro, novamente, mais de 30 anos depois, esquecido em algum lugar naquele dia em que conheci Antonio Houaiss, Porfírio Rodrigues e fui apresentado a Urano Lustig, foi transformar o citado “Cronos” de Porfírio, em “Eros”; e conectar o passado, o presente e o futuro, em algo tão mágico quanto o momento atual, ao me fazer relembrar de algumas citações de Jorge Luís Borges, especificamente alguns trechos do Poema dos Dons - eixo temático no livro de Lustig – “ (...) Qual de nós dois escreve este poema, (...) De um eu plural e de uma mesma mente? (...) Que importa o verbo que me faz presente (...) Se é uno e indivisível o dilema?”.

Lustig será lido somente agora, talvez não, quem sabe melhor seja guardá-lo em alguma biblioteca, e esperar que ele aconteça noutro passado-futuro que não o meu, algo pouco memorioso, como um “Funes” inverso do mesmo Borges, guardado apenas para aqueles que não têm muita certeza e memória de nada, pois para os que as tem reserve-se apenas o coitado do futuro de Cronos.

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