Diario de Pernambuco
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Festas juninas extemporâneas

Pedro Rubens
Reitor da Unicap

Publicado em: 07/07/2022 03:00 Atualizado em: 07/07/2022 06:43

Por causa da nova onda da pandemia e da calamidade pública provocada pelas chuvas, alguns festejos juninos foram adiados, no Recife, mas também em outros lugares. Por isso, esta reflexão ainda está em tempo. Celebrei a primeira das festas, animando uma roda de conversas com rapazes que desejam renunciar ao casamento para postularem a vida franciscana na Província Santo Antônio do Brasil (à qual pertence Pernambuco), no Dia dos Namorados (as) que, em nosso país, por influência do santo português, difere de, praticamente, todo o restante do mundo, que celebra o Valentin’s day, em 14 de fevereiro. Nas outras duas datas, estive em isolamento social para cuidar da Covid que, graças às vacinas e aos cuidados, me afetou com sintomas leves. Mas evoco outro sinal extemporâneo da festa junina: talvez por falta de espaço para mais feriados religiosos no calendário civil, a liturgia da celebração de São Pedro e São Paulo da Igreja Católica passou para o domingo seguinte, no calendário canônico brasileiro. Vale destacar que essa mudança não diminuiu o sentido da festa, muito pelo contrário: a festa dessas duas “colunas da Igreja”, no Brasil, passou a ser celebrada no domingo, “dia do Senhor”, centro da fé e fundamento da Igreja.

Em tempos de crise civilizatória geral, como denuncia o Papa Francisco, bem como na crise de democracia que vivemos, sobretudo em países como o Brasil. Durante a pandemia e em alguns episódios da vida política nacional, temos assistido, dentro dos templos ou de espaços públicos e até nas ruas, manifestações estranhas, que, embora em suposta defesa de igrejas e usando o nome de Jesus, são, realmente, contraditórias com o Evangelho. O regime da cristandade, como sabemos, entrou em crise com o advento da modernidade, do Estado moderno de Direito e das democracias. Nos últimos tempos, a modernidade também entrou em crise, sobretudo em razão de suas promessas não cumpridas e de suas consequências nefastas: neoliberalismo cruel, meio ambiente devastado, bolsões de empobrecimento, guerras absurdas alimentando mercado de armas (terceira guerra mundial contínua e fragmentada, como diz o Papa Francisco), pandemias que ameaçam a humanidade explicitando suas profundas desigualdades... Mas a crise da modernidade, que me desculpem os conservadores saudosistas, não significa nenhuma chance de retorno à cristandade. Estamos diante de um duplo desmoronamento histórico, uma verdadeira crise dos sistemas totalizantes, tanto a cristandade como a modernidade. Eis um tempo favorável a acolher a diversidade, conviver com a pluralidade e assumir a corresponsabilidade mundial abraçando todas as dimensões de nossa existência: sobrevivência, economia, ciência, política, espiritualidade... Tudo está interligado, diria o Papa Francisco.

As festas juninas, tão bonitas, populares e significativas, expressam muito do espírito nordestino. Foram trazidas de outros povos, mas muito bem traduzidas ao nosso jeito de ser e festejar: por exemplo, no comando aos brincantes, entre en avant tous e en arrière transformamos em grandes rodas ou cirandas, lembramos a chuva de mentira e falando de medos e sustos bem-humorados (olha a cobra!), testamos o grau de nossa coragem, sem esquecer o changez de dames e changez des chevaliers, práticas de troca de casais que saíram dos folguedos para a vida contemporânea. As festas mudaram com as novas bandas e grandes estruturas, as quadrilhas foram estilizadas. Uns reclamam, com saudades, das festas de interior e das quadrilhas matutas; outros defendem a inovação: sem entrar na discussão, digamos que a tensão pode ser interessante e fazer pensar. Os legítimos folguedos, como dizia um quadrilheiro, devem guardar três elementos: a dramaturgia (casamento matuto: viva Santo Antônio!), a dança e a música (Viva São João!).
Além disso, creio, deveríamos incluir a simbologia das chaves para abrir novos ciclos, não somente das colheitas, mas de nossa vida (viva São Pedro!) e, ainda, lutar por dias melhores e novos espaços (viva São Paulo!), com espada numa mão e a Palavra libertadora na outra: este último santo ainda não encontrou expressão nos nossos folguedos juninos.

Agradeçamos, portanto, a Santo Antônio casamenteiro, também grande pregador e amigo dos empobrecidos: Que esse franciscano, tão querido e popular no Brasil, nos ajude a reinventar nossas relações de amor e renovar os casamentos. Que São João, precursor do Messias e profeta corajoso que morreu de maneira trágica, mas, celebrado em seu nascimento, nos legou a alegria da festa, simbolizada nas fogueiras, nos fogos de artifícios, na música e na dança. São Pedro, simbolizado com as chaves nas mãos, não somente seja sinal de abertura da igreja e dos céus, inclusive associado às chuvas e ao bom inverno de colheitas, que ele nos ofereça chaves novas para reinterpretar nossas ações no mundo: São Pedro que nos deu as chaves para fechar e reabrir novos ciclos (alusão à festa da colheita e às comidas da época), nos inspire um novo jeito de habitar nosso planeta, cuidando das mudanças climáticas e construindo uma sociedade pós-pandemia, realmente, sustentável. E São Paulo? Precisamos ainda incorporá-lo nas festas juninas, interpretando, de um lado, o símbolo da espada para encorajar nossas lutas de hoje, e, de outro lado, a Palavra de Deus que ele empunhou como uma nova arma para o bom combate da liberdade, para além dos círculos religiosos fechados. Que Paulo, convertido em apóstolo dos pagãos ou não crentes, nos faça perceber melhor o sentido de um cristianismo sem fronteiras, respeitoso dos espaços públicos e da democracia, da separação da Igreja e do Estado, cada um com seu papel, sem uso e abuso nefasto de poder... Enfim, que a bela mistura das festas juninas, que não dividem entre profano e religioso os melhores momentos de nossa vida, possa nos convencer, retomando Pessoa, que tudo isso é “tão humano que é divino”.

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