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Bem-vindos ao futuro (I)

Rodrigo Pellegrino de Azevedo
Advogado

Publicado em: 11/05/2022 03:00 Atualizado em: 10/05/2022 23:28

Imaginem uma cidade repleta de espelhos?! Todas as ruas, bares, locais de encontros e desencontros, escolas, esquinas, bairros ricos e pobres repletos de espelhos. Imaginem uma cidade, todinha mesmo, ornada com espelhos a nos refletir e a refletir os outros, as mesmas ruas, casas, bares, modificando a nossa realidade a tal ponto que não mais teríamos uma mesma cidade, mas cidades múltiplas e reflexos e profundidades capazes de revelar o que invariavelmente não vemos.

Não necessariamente seriam espelhos iguais, mas espelhos redondos, quadrados, octogonais, espelhos milimetricamente inseridos para nos permitir e permitir aos outros, nos mesmos espaços, se entreverem por ângulos inimagináveis. É fato também que uma cidade assim, não seria permeável ao trânsito. Os reflexos das imagens acarretariam confusões mentais capazes de nos fazer perder a orientação. Para uma cidade assim existir, seria necessária mais gestão sobre essa profusão de dados a circular em todas as direções, e essa gestão, necessariamente, poderia implicar na manutenção de distorções sobre nós mesmos, distorções virtuais que alteram o mundo real.

A linguagem poética acima é proposital para entendermos o que está por vir, em breve, na cidade do Recife. Uma cidade onde tudo poderá ser visto, onde existirão olhos atentos, o tempo todo, a tudo, implicará numa cidade mais segura, por óbvio. Mas essa segurança também dependerá de como essas imagens serão geridas, para quais finalidades, para quais necessidades, onde, e por quem, serão armazenas, por quanto tempo, e como serão descartadas. Teremos que controlar os “espelhos” digitais.

A vigilância permanente, por certo, nos permitirá alguma sensação de segurança, mas também para alguns deverá implicar também em algum efeito invasivo, tanto com relação à sua imagem, quanto com relação ao seu comportamento. Essa cidade repleta de espelhos a nos “capturar” como objeto de informações e a nos “encarcerar” em diversos bancos de dados está chegando, juntamente com o projeto de concessões que pretende entregar “equipamentos que vão trazer segurança e conectividade” a todos os cidadãos.

Essas ponderações iniciais introduzem o tema, aprioristicamente, apenas, para nos fazer refletir sobre a nossa privacidade com o início dos modelos de cidades digitais, ou melhor, “figitais”, como tão brilhantemente intui o Prof. Silvio Meira. Cidades onde nós, os cidadãos, os carros, as coisas, oferecerão dados, o tempo todo a alguma “inteligência” que os armazenará em algum ambiente invisível (uma nuvem digital) e devolverá esses mesmos dados ao mundo físico, gerindo e corrigindo problemas em tempo real, como se alguma mágica permitisse a interação permanente de tudo com todos, ao mesmo tempo.

A ideia posta é de se fazer parcerias com a iniciativa privada para se implantar na cidade 108 relógios eletrônicos inteligentes, com uma série de serviços gratuitos para população, tais como “wi-fi” gratuito, e também câmeras de videomonitoramento, cujas imagens captadas poderão “auxiliar a prefeitura na gestão do tráfego e mobilidade urbana, bem como na questão de preservação e segurança do patrimônio público”.

Conta a mitologia grega, que os olhos contidos na calda do pavão foram ali colocados por “Hera”, em homenagem, e após o seu vigilante, Argos Panoptes (pan = tudo + opteo / oro = ver, que tinha cem olhos em todo o corpo e possuía grande força) ter sido assassinado por “Hermes”, a mando de Zeus, para impedir a vigilância da esposa ciumenta, ante a suas estripulias com suas amantes, que no caso específico era uma só (a Ninfa Io). Esse projeto, que poderia ser batizado “Argos”, alça a nossa cidade a um patamar de gestão que não terá volta, tal qual ocorre mundo afora. Mas, questões necessitarão ser “processadas” com mais discernimento, dotando de muita transparência a captura, armazenamento e tratamento desses dados a serem operados pelo importante projeto. Sei que os propósitos são muito bons e necessários ante a complexidade da gestão de grandes centros urbanos, mas fica uma ponderação: não seria interessante se criar um “Comitê Municipal de Gestão da Privacidade” para se “evitar a ira de Zeus” e permitir mais transparência, segurança e garantia na gestão desses dados? Bem-vindos ao futuro!

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