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Intolerância não, racismo!

Igor Travassos
Comunicador, integrante da Articulação Negra de Pernambuco e da Coalizão Negra por Direitos, é Olubassé do Ilê Obá Aganjú Okoloyá - Terreiro de Mãe Amara

Publicado em: 21/01/2022 03:00 Atualizado em: 20/01/2022 22:49

Existe um hábito brasileiro de nomear as coisas de forma generalista e cristalizá-las, apresentando resistência para revisões e atualizações. Sem refletir tempo, espaço e, mais ainda, as circunstâncias. Na verdade, é quase uma tentativa de não criar indisposições e sustentar um espaço diplomático que vive na corda bamba.

O dia 21 de janeiro é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa e surge, paralelo ao Dia Mundial das Religiões, a partir da morte de uma Iyalorixá, que teve um infarto depois de meses sendo vítima de violências. Mãe Gilda de Ogum teve seu terreiro, o Ilê Axé Abassá de Ogum, localizado em Salvador, totalmente destruído por fundamentalistas religiosos. Esse episódio aconteceu há 22 anos. Mas também aconteceu no dia 1º de janeiro deste ano, em São José da Coroa Grande, Litoral Sul de Pernambuco, no Ilê Axé Ayabá Omi, o Terreiro das Salinas.

Esses casos não são isolados. Somente aqui no estado, podemos citar outros dois casos recentes e emblemáticos que apontam um alvo: as religiões de matrizes africana, afro-brasileira e afro-indígena, que têm como maioria dos adeptos pessoas negras. Em agosto do ano passado, um pastor utilizou suas redes sociais para incitar o ódio e a violência contra artistas negros que pintaram o Túnel da Abolição. Ele se referiu ao local como portal para o inferno, relacionando aos orixás retratados pelos artistas em suas obras. Em 2018, a Gameleira, árvore centenária localizada no Ilê Obá Ogunté, o Sítio de Pai Adão, fundado em 1875, que é o terreiro mais antigo em atividade no estado, foi totalmente incendiada. A árvore, que abrigava o orixá Iroko, era patrimônio tombado pela Prefeitura do Recife, pelo Governo de Pernambuco e pelo governo federal.

Diante desses casos, até parece que foram naturalizadas as violências contra os povos de terreiro e atribuída a responsabilidade pelo combate a esses atos criminosos às próprias vítimas. Mas, se a gente for olhar para a raiz e estrutura da luta de combate e enfrentamento ao racismo, é exatamente isso: o poder público fez muito pouco, cabendo aos próprios negros e negras, vítimas diárias do racismo no Brasil, lutar pela sua existência. O direito à fé e à liberdade de culto é garantia constitucional, contido no artigo 5º, inciso VI, quando estipula ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”. Mais ainda, os povos de terreiro contam com o Estatuto de Igualdade Racial, dispositivo federal que reforça os direitos constitucionais à população negra.

O aparato jurídico e institucional existe e assegura a liberdade de culto, no entanto, tal qual a democracia e a igualdade de direitos, que nunca existiu ao povo negro, não é aplicado quando são os orixás e as entidades sagradas do candomblé, da umbanda e da Jurema que são alvo de todo tipo de injúrias, depredações e incêndios. Não dá pra colocar tudo na mesma bolha, dizer combater a intolerância religiosa quando essa intolerância tem um alvo e é a pele preta. Por isso, devemos realmente repensar aquilo que chamamos de intolerância religiosa e adotar novas narrativas e significados, reafirmando que estamos lidando, e tentando, a duras penas, combater o racismo religioso.

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