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Saúde em tempos de pandemia

George Trigueiro* e Luiz Maia**
* Presidente do SINDHOSPE
** Professor e Pesquisador da UFRPE

Publicado em: 23/12/2021 03:00 Atualizado em: 23/12/2021 05:20

Nos últimos dois anos, desde a emergência da Covid-19, o setor de saúde e as operações hospitalares têm ganhado destaques diários na mídia, e não apenas em função da extraordinária batalha em favor da vida; no Brasil, assim como em muitos outros lugares, essas organizações constituem o epicentro de uma série de mudanças estruturais, que envolvem novas filosofias de gestão e de atendimento aos pacientes; “velhos” e novos riscos regulatórios; rápida incorporação de novas tecnologias; disrupções críticas em cadeias internacionais de suprimento; crescente judicialização; e, claro, um grande volume de investimento em consolidações, via fusões e aquisições de operações. Com tantas mudanças simultâneas, rápidas e profundas, os desafios não poderiam ser, de fato, pequenos – e exigem reflexões e discussões de natureza sistêmica, e alcance global.

Dificilmente alguém se levantaria contra a modernização na gestão de clínicas e hospitais. São gerações de novos profissionais, com sólidas formações além das carreiras médicas, a desafiar culturas organizacionais conservadoras e mudar rapidamente o perfil da gestão na saúde. Eles se apoiam cada vez mais na criteriosa revisão de protocolos e processos organizacionais, implantam sistemas digitais para monitoramento e ajuste de suas operações em tempo real, atendem mais demandas pessoais, profissionais e sociais... e têm a dificílima missão de manter a humanidade e o senso de responsabilidade de suas equipes, num contexto de pressão crescente por resultados financeiros.

Essa pressão se explica, entre outras coisas, pelo ritmo acelerado de consolidações horizontais (entre unidades antes concorrentes) e verticais, com a reintegração de atividades que permaneceram por décadas, terceirizadas. Essas novas operações – privadas, em sua maioria – precisarão ir além das chamadas “economias de escala”, que permitem a redução de custos médios; será indispensável planejar e trabalhar para as menos conhecidas “economias de escopo”: com o uso intensivo de tecnologia da informação, os clientes e suas famílias passarão a contar com pacotes customizados de serviços, trazendo eficiência e ganhos para todos. E surgem novas demandas, diariamente.

Passando a uma perspectiva mais ampla, merece atenção redobrada (e planejamento estratégico, em nível nacional) o Sistema de Saúde do Brasil, que inclui não apenas o SUS e seus desafios de financiamento e articulação, mas todos os setores industriais e cadeias de suprimento que o atendem. Por certo, exigem prioridade o aperfeiçoamento dos modelos de consórcios municipais e as relações dos setores/agentes públicos com a Saúde Suplementar (setor privado, setor filantrópico, etc). Mas para o Sistema de Saúde do Brasil enfrentar os desafios deste século, precisaremos investir bem mais em educação e pesquisa aplicadas, tecnologia e segurança da informação (haja visto a LGPD) – a partir de uma visão estratégica global. Afinal, a pandemia de Covid-19 tem não apenas revelado, como também acentuado as desigualdades inter e intrarregionais no acesso à saúde, tornando ainda mais clara a necessidade de um novo modelo de assistência em nossos país.

O SUS, em particular, precisa ver atualizada sua visão estratégica com base na epidemiologia, mirando mudanças estruturais e operacionais; a implantação de equipamentos (hospitais,  postos de saúde, UPA´s, etc), baseados em critérios eleitoreiros não farão frente às profundas mudanças demográfica (envelhecimento) e epidemiológica da nossa sociedade – como as trazidas por doenças crônicas degenerativas não transmissíveis e diversas doenças emergentes; esse ponto nos leva ao último aspecto do panorama aqui contemplado, precipitadamente considerado pós-pandêmico: a convivência global com uma vasta gama de doenças negligenciadas, que afligem mais de um quarto da população do planeta – muitas de origem animal (zoonoses) e associadas a desequilíbrios ambientais.

Assim como subestimamos as consequências duradouras da Covid-19 para a saúde dos pacientes recuperados, tendemos a fazê-lo com os riscos de um ecossistema socioambiental globalmente integrado e cada vez mais estressado; adoecem os ambientes, os animais e as pessoas. A redução acelerada da biodiversidade, a destruição de biomas essenciais e as diferentes formas de contaminação dos cursos d’água nos obrigam a reconhecer os limites do “orçamento planetário” – como já ocorre no acúmulo de carbono na atmosfera e o aquecimento global. Enquanto muitas lideranças (públicas e privadas) trabalham no limite de uma concepção míope de eficiência, os riscos pessoais, locais e regionais de adoecimento podem se converter em sucessivas crises globais. Em outras palavras, o planeta nunca foi um terreno tão fértil para novas pandemias, para as quais seguimos despreparados.

Assim como o Dr. Li Wenliang, oftalmologista, soube levantar corajosamente a voz para alertar o mundo em 2019, aos primeiros sinais de uma possível epidemia com potencial pandêmico, os profissionais da saúde humana, animal e ambiental, dentro ou fora de hospitais e serviços de saúde, precisarão se ver como elos de uma rede intersetorial para detecção e prevenção de doenças e agravos; afinal, somos uma sociedade tecnologicamente mais poderosa, embora, paradoxalmente, mais vulnerável. Essa abordagem de Saúde Única, recém abraçada pela OMS e pelo próprio G-20, nos convida a lembrar que – todos, pessoas, animais, ambientes e empresas – interagimos em um ecossistema com suas regras “naturais” de governança; conforme a civilização humana viola princípios básicos dessa governança, todo o sistema perde seu equilíbrio... e as consequências já têm sido fatais.

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