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Chico Sapateiro

Rodrigo Pellegrino de Azevedo
Advogado

Publicado em: 25/10/2021 03:00 Atualizado em: 24/10/2021 23:06

Avenida Norte, ao lado do Edifício São José, n. 714, um ambiente de dois cômodos minúsculos, construído em madeira velha reaproveitada, quando ainda não era chique se falar nisso, era o local de trabalho e dormida de Chico Sapateiro. Na década de setenta, ainda existiam sapateiros a fazer remendos em solas e reconstrução de couros para todo tipo de pessoa; homens, mulheres e crianças. Cresci numa época em que a reciclagem era uma necessidade, sempre. As coisas não eram descartáveis, nem as pessoas.

O máximo da tecnologia esportiva era o “kichute”. Uma espécie de meio termo entre o tênis e as chuteiras. O “kichute” era um calçado com “travas” de borracha, por incrível que pareça, ainda vendidos na web hoje como material retrô, algo meio “kitsch”, como tudo que se intitula retrô. Outros dois calçados também “retrofitados” eram os “congas” e “bambas”. Esses foram os primeiros calçados descartáveis que Chico Sapateiro não conseguia resolver em seus consertos.

Tudo se reconfigura, mesmo coisas anacrônicas, vivemos tempos em que as coisas e tudo mais são “comoditizadas”, as memórias, os costumes, os hábitos, as famílias, os namoros, se ainda vivo fosse, apenas Chico Sapateiro não o seria. Ele, de domingo a domingo, solitário em sua casa/oficina, dia após dia, consertava os sapatos de toda vizinhança do bairro da Tamarineira. Lembro que o dia de sábado era o dia de eu levar os sapatos de casa para consertos ou polimentos. Chico sempre se comprometia com a entrega no mesmo dia, exercia seu ofício com esmero e dedicação.

Ele era uma pessoa solitária. Dia sim, dia não, aparecia tarde da noite, quase sempre na porta de nossa casa, embebido dos sonhos frustrados, tragados, gole a gole, nas noites de solidão e silêncio. Gritava da rua, por um copo d’água, agradecia trôpego a caminho de sua “loja” para lá deitar e acalentar seus delírios reais e imaginários para, no outro dia, estar pontualmente às sete horas da manhã, reabrindo seu espaço de trabalho, com os olhos fundos marejados, não sei se de lágrimas ou de insônia. Era sempre assim. O via sempre assim, antes de sair com minha bicicleta a caminho do Colégio São Luís.

A casa/oficina dele era uma espécie de venda de serviços para conserto de sapato. Um “balcão de atendimento” servia de apoio para as entregas e recebimentos dos produtos e a parte posterior era seu quarto de dormida, visível do balcão, cujas paredes de madeira eram revestidas com páginas da Bíblia. Chico trabalhava sozinho, morava sozinho, vivia sozinho. Seu ofício era exercido como uma espécie de “luthier” pois costumava dizer que os sapatos dele eram violões para serem pisados “no macio”.

O tempo encarregou-se em desmilinguir, aos poucos, Chico Sapateiro. Os episódios de delírio aumentaram. Os horários de abertura da oficina passaram a ser irregulares. Em minha ingenuidade infantil, achava que ele estava ficando amarelado em razão da cola, “perfume” que dia e noite era exalado, e cada vez mais, misturava-se com um cheiro de álcool entranhado em sua alma.

Não me dei conta que Chico parou de me dizer “boa prova, Rodrigo”, ou de perguntar como tinha sido a semana no colégio. Passou a realizar seu ofício, misturado com as noites de delírios e gritos por um copo d’água. Já um pouco mais velho, li Fogo Morto, por obrigação em preparação para o vestibular, imediatamente associei o realismo do Mestre José Amaro do livro, que se despia de si, tal qual Chico Sapateiro em sua “mistura” com o também personagem Quincas Berro D´Água de Jorge Amado. A vida impõe-nos lembranças boas e amargas. Chico Sapateiro, solitário em seu mundo de ofício cruel e seco, nunca reclamou da vida gastada entre pregos, cola e couro; ungida nas noites delirantes e acalmadas pelo “unguento” do álcool. Chico Sapateiro foi encontrado morto, num dia dos finados, sob o peito, uma última página da Bíblia, a derradeira para si, estava lá, João 13:4-16. Desde então imagino que Chico Sapateiro depois do copo d’água pedido lá em casa, deitou-se em sua oficina, arrancou a página da parede por uma última vez e teve, na undécima hora de vida, o direito ao banho divino, depois de tantos pés “lavados” por si.

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