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A pandemia da fome retorna ao Brasil

Saulo Moreira
Jornalista

Publicado em: 28/10/2021 03:00 Atualizado em: 28/10/2021 05:12

Em certa medida, crises são como guerras. Produzem morte, dor, tristeza e imagens. Vídeos e fotografias marcam época como símbolos que nos permitem uma associação imediata com fatos históricos.

A corrida desesperada de Kim Phuc Phan Thi nunca será esquecida. Então com 9 anos, expressão de pavor na face, a menina tentava se livrar dos produtos químicos que lhe queimavam o corpo nu. Era a Guerra do Vietnã, em 1972.

Mais recentemente, em 1993, outra imagem de criança correu o mundo. Foi feita pelo fotógrafo sul-africano Kevin Carter, num Sudão que vivia uma guerra civil há décadas. Esquálida, uma menina de seus 5 anos repousa sob o sol enquanto um abutre a observa como a esperar por sua morte. A foto denunciou ao mundo a miséria e as atrocidades em vários países da África, o continente esquecido.

São muitas as imagens de guerra, de crise, de conflitos. Ainda que umas sejam mais cruéis que outras, são todas dramáticas. Pequenas embarcações apinhadas de refugiados no Mediterrâneo, os Boeings se chocando com as Torres Gêmeas de Nova York, afegãos despencando de uma aeronave que deixava o país, agora novamente dominado pelo terror do Talibã.

Mas nos voltemos à nossa guerra particular. Sempre fomos pobres e altamente desiguais. Entre 189 países, estamos no 84º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).  Em matéria de desigualdade de renda (índice Gini), só sete países - todos da África - têm uma situação pior que a nossa.

Os números são da ONU e deveriam servir de alerta para quem acha que está protegido em pequenas bolhas de riqueza e prosperidade.  

Nas décadas de 70 e 80, reportagens de revistas, jornais e TVs mostravam famélicos do interior do Nordeste. Num cenário ocre, o chão rachado, as caveiras de boi, paus-de-arara, mulheres caminhando léguas e mais léguas com uma lata d’água na cabeça. Quem não lembra?

A hiperinflação dos anos 80 e parte dos 90 também sacrificava os mais pobres, aqueles que não tinham acesso aos mecanismos bancários de correção da renda.

Vieram a estabilidade e as políticas sociais compensatórias e parece que pouco a pouco o Brasil ia deixando a UTI da miserabilidade.

Nos últimos anos, porém, engatamos a marcha à ré.

Como sabemos, o país vive uma crise política, econômica e sanitária que cria uma conjuntura extremamente perversa, sobretudo, claro, para os mais pobres. Nesse aspecto, afinal, nunca foi diferente.

Nos últimos dois anos, a pandemia de Covid-19 já matou mais de 600 mil pessoas. Dificilmente esqueceremos aquela imagem aérea de centenas de covas coletivas abertas em Manaus. Ou de pessoas desesperadas à espera de um respirador sob tendas brancas de hospitais improvisados.  

A pandemia, sua gestão federal desastrosa e desumana, não apenas ceifou vidas. Aprofundou nossa pobreza. Nas ruas, praças e avenidas, pedintes exibem cartazes suplicando por comida, roupa e trabalho. Senhoras pobres com bebês no braço caminham entre carros. Há imagens fortes nos semáforos do Recife, há uma marca impiedosa de contemporaneidade nas calçadas dos supermercados.  Observem, observem.

Mas a meu ver nenhuma imagem de nossa recidiva miséria choca tanto quanto dois vídeos em que pessoas procuram comida em depósitos de caminhões de lixo.

Em Fortaleza, um homem e sete mulheres, três delas aparentemente idosas, disputam espaço e se debruçam sobre o lixo já acondicionado no caminhão. Uma das mulheres, de vestido estampado, carrega um balde branco para facilitar a coleta dos resíduos. Outra parece recolher um peixe, que coloca numa caixa de papelão rapidamente oferecida por uma moça que antes tinha tentado, sem sucesso, um espaço entre os que se aglomeravam atrás do veículo. Ao lado, enquanto os garis trabalham, outras pessoas vasculham o conteúdo de tonéis azuis que logo serão lançados aos compactadores. O movimento é frenético, como quem busca encontrar antes do concorrente algo que possa ser aproveitado.

Em Olinda, numa cena parecida, cerca de 15 pessoas, entre homens e mulheres, também disputam espaço na traseira de um caminhão de lixo. Com sacolas plásticas nas mãos, buscam encontrar entre os restos da carga de um supermercado algo que pudesse ser consumido. Há um sentido de urgência, um sentimento de que é preciso agir rápido antes que o caminhão se vá. Um menino de seus sete anos, com os bracinhos para trás, observa a movimentação. Os funcionários do supermercado também ficam alguns minutos parados, sem saber o que fazer.  Normalmente, toda aquela carga seria destruída pela prensa do caminhão. Mas com tantas mãos, braços e troncos a remexer e coletar os restos, alguém teve o bom senso de não ativar as engrenagens.

Diante da desesperança provocada por imagens como essas, me vem à mente um poema escrito pelo pernambucano Manuel Bandeira: “Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos/Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade/O bicho não era um cão/Não era um gato/Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem.” (O Bicho, 1947). Triste.

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