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Yom Kipur: um resgate histórico

Jáder Tachlitsky
Economista e professor de História Judaica e Cultura Judaica

Publicado em: 22/09/2021 03:00 Atualizado em: 21/09/2021 22:54

Boa noite. Estamos tomados por uma grande emoção em podermos realizar essa cerimônia de Yom Kipur na Sinagoga Kahal Zur Israel, reconhecida como a Primeira Sinagoga das Américas. Neste mesmo espaço, em meados do século 17, a comunidade judaica egressa de Amsterdã celebrava os serviços religiosos e as festividades do calendário judaico. Essa comunidade também era constituída pelos marranos, descendentes dos conversos forçados da Península Ibérica, residentes na então Capitania de Pernambuco

Nesta noite em que entoamos o Kol Nidré, lembramos da grande tragédia vivida pelos judeus ibéricos. Eles que tanto contribuíram com o desenvolvimento daquela região, viram-se, a partir do final do século 14, como alvos de perseguições, atrocidades e conversões forçadas.

Conversos ou expulsos, como ocorreu em 1492 na Espanha e logo em seguida em Portugal, muitos migraram para as terras do novo mundo. Estiveram umbilicalmente ligados à descoberta do Brasil. Constituíram importante núcleo na vizinha cidade de Olinda. Praticaram seu judaísmo de forma oculta, para não serem alvo do Tribunal da Inquisição. E tantos o foram.

Com a chegada dos holandeses, foi possível vivenciar nesta cidade do Recife a prática do judaísmo, ainda que por curto período. Neste mesmo espaço, em que hoje temos a honra de celebrar o momento mais significativo de nossa prática religiosa, aquela comunidade de outrora entoava seus cânticos, recitava suas preces.

Este processo foi interrompido com a rendição holandesa aos portugueses. Muitos singraram os mares em busca de novos caminhos. Outros tantos embrenharam-se nos interiores agarrando-se a suas tradições da forma que fosse possível.

A sinagoga deixou de existir. Ao prédio foram dadas outras destinações. Os vestígios foram apagados ou soterrados. Talvez só essas paredes ainda tivessem em si impregnadas as vozes que expressavam a fé de um povo.

Muitos séculos se passaram. Novas comunidades judaicas, no início do século 20, conviviam na Europa Oriental com novas formas de exclusão e de opressão. O mar foi novamente seu refúgio, seu caminho. Aqui bem próximo, o Porto do Recife recebeu ondas migratórias daqueles que queriam reconstruir suas vidas com liberdade e dignidade. Sequer sabiam que, num passado distante, esta mesma cidade havia acolhido seus irmãos de fé. E que houvera aqui uma sinagoga tão famosa.

Coube a lideranças desta comunidade, poucas décadas atrás, com o apoio também de não judeus, a identificação e o renascimento da Kahal Zur Israel.

Ao longo de sua história, o povo judeu foi alvo de muitas perseguições e massacres. Mas a resposta judaica a essas tragédias não foi o cultivo do ressentimento ou do ódio. O caminho sempre foi o da reconstrução, inspirado numa fé inabalável de que o ser humano foi criado para o bem, para a concórdia, para criar aqui na Terra um espaço de respeito e de dignidade. E que as crianças, as próximas gerações, haveriam de se beneficiar desse esforço. Foi nesse espírito que o povo de Israel sempre se reergueu. Para cada comunidade extinta, a criação de uma nova comunidade. Este povo foi capaz de, em paralelo à maior tragédia sofrida por qualquer povo, em qualquer época, reconstruir sua pátria ancestral.

E o que representa, nesse contexto, o retorno da Kahal Zur Israel ao espaço de nossa cidade? O que representa o resgate desta “Rua dos Judeus”? É uma mensagem forte e expressiva, de que essa memória não foi apagada. Que a luta pela liberdade e pela dignidade humana é uma luta de todos os povos, de todas as épocas.

Quando lembramos dos sofrimentos impingidos ao nosso povo ao longo da história, não podemos deixar de nos solidarizar com todos que ainda sofrem qualquer tipo de discriminação e de perseguição. A nossa luta é a luta por toda a humanidade O nosso sonho é o sonho do ser humano livre e respeitado, independente de sua origem, sua crença, suas convicções.

Hoje estamos felizes. Hoje estamos cônscios do significado de 368 anos depois estarmos voltando a celebrar o Yom Kipur no salão da Primeira Sinagoga das Américas.

Baruch Atá Adonai, Elohênu Melech Haolám, Shehecheiánu Vekimanu Vehigiánu Lazeman Hazé!

(Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus, Rei do Universo, que nos fizeste viver, nos amparaste e nos fizeste chegar até essa época)

Amén

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