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O acaso e o caso de M. - 2ª parte

Og Marques Fernandes
Ex-repórter do Diario de Pernambuco

Publicado em: 21/09/2021 03:00 Atualizado em: 20/09/2021 20:46

Nas relações entre o crime organizado e a polícia, os antagonistas se conhecem rapidinho. Relembro aqui, a primeira parte, relatada na semana passada, da história feita de ódio e acolhimento que entrelaçou um policial federal chamado Marcelo e M., a mulher que, ao lado da filha e do genro, liderava o tráfico de cocaína numa região do país. Os fatos bem mereciam um livro em forma de reportagem.

O agente era o chefe da equipe que investigou a traficante. Se não foi um caso de ódio à primeira vista, era quase isso. Enfim, “o inferno são os outros”, nas palavras de Sartre. M. convenceu-se de que sofria perseguição do tira. Passou a detestar o investigador, ao longo do entra e escapa das detenções. O policial recorda o que lhe disse a negociante de drogas;

 -“Marcelo, por que você só me persegue? Justo quando eu ia fazer um negócio grande e ficar bem de novo! Não existem outros traficantes nesse estado não, pra você ficar só em cima de mim? Justo agora que eu ‘tava’ trabalhando bem e você não deixa”!

A mulher teve a lucidez de não consumir entorpecentes. Quando jovem, observou que pessoas usuárias de drogas terminavam como farrapos humanos. Não queria adoecimento para si. Desenvolta, M. mantinha intensos contatos com traficantes de outros estados.

A primeira prisão ocorreu em 2002, na porta de casa, quando ela retornava da região Centro-Oeste num automóvel que ocultava cerca de 5 quilos de cocaína no para-lama. A reação da mulher foi de espanto. Não acreditava que estivesse sob investigação dos federais.  A mãe de M., que preparava café, ameaçou jogar uma chaleira de água fervente sobre os policiais, porém foi contida.

No dia seguinte, Marcelo descobriu coincidências que aproximavam a vida de ambos:

- “Nossas filhas estudavam na mesma sala e compartilhavam trabalhos escolares. Meus pais moravam a duas quadras de distância de sua casa. Nossas mães se falavam com certa frequência e durante anos fizeram exercícios físicos na academia para a terceira idade existente no bairro”, revela ele.

A história recomeçou onde poderia terminar. A partir do primeiro flagrante, os papeis de caça e caçador ficaram confusos. Enquanto era investigada, M. mantinha olheiros próximos da casa do policial para verificar a viatura que utilizava. Chegou a confessar que esteve próximo de matá-lo em duas oportunidades.

A Polícia Federal prenderia a traficante outras vezes, incluindo filha e genro na derradeira prisão, em 2006, por tráfico de 60 quilos de cocaína. No final das contas, foi condenada a mais de 20 anos de reclusão, na soma dos diversos processos.

Do que sei de M., a raiva a importunava nos primeiros dias de recolhimento naquele ambiente soturno, mas o tempo, que passa bem devagar na cadeia, tratou de sussurrar conselhos. Decorreram seis anos do último encontro com Marcelo. Em agosto de 2012, as circunstâncias do acaso interferiram como condutor do destino. Numa saída de final de semana da prisão autorizada pelo juiz, M. e a filha resolveram comprar alguns suprimentos que levariam para a penitenciária. No carro, a mãe provocou o assunto:

- “Gostaria de rever Marcelo para lhe dizer que não tenho mais raiva dele e hoje, entendo o seu papel de policial”.

A filha reagiu:

- “Você está louca, mamãe! Ele destruiu a gente”.

No sinal fechado, arte da vida, um automóvel emparelhou. Nele, Marcelo ia no banco do carona. O improvável encontro transformou-se em oportunidade. A mulher desceu do carro e pediu para conversar com o policial, a princípio desconfiado. Contudo, estacionaram os veículos mais adiante. M. confessou o desejo de mudar de vida.

Era, talvez, pedidos de desculpas e de ajuda. Decorrido tanto tempo do derradeiro contato entre eles, era razoável a descrença do agente. De fato, ela desejaria abrir o coração? Poderia confiar na antiga investigada? Valeu-se da experiência. Convidou-a para, no dia seguinte, comparecer à sede da Polícia Federal a fim de prosseguir na conversa. Você, precioso leitor, saberá desse encontro na próxima semana.

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