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O dilema do cronista

Og Marques Fernandes
Ex-repórter do Diario de Pernambuco

Publicado em: 13/07/2021 03:00 Atualizado em: 13/07/2021 05:52

O cronista e advogado Arthur Carvalho, personagem para o livro Guiness de Recordes, pois escreve semanalmente na imprensa pernambucana desde 1973, contou-me um encontro curioso. Identificado por uma leitora, recebeu elogios pelos textos,  o que a fã fez muito bem, notadamente porque escrevia com muita facilidade. Com a elegância própria do estilo, Arthur agradeceu, mas esclareceu que não era bem assim. Tem toda razão o escriba.

Quem lê as cinquenta linhas de uma crônica no jornal, revista ou livro, está longe de perceber o quanto de sacrifício está contido naqueles escritos. Não há nada tão parecido com o mito de Sísifo, que por ofender os deuses gregos, recebeu como punição rolar com as mãos e por toda a eternidade uma grande pedra de mármore até o cume da montanha. Quando atingia o topo, a pedra rolava abaixo, obrigando o pobre mortal a repetir incessantemente a tarefa. O cronista foi condenado por algum caprichoso deus da palavra a reinventar, a cada semana, um novo texto para o prazer da divindade que, por mero altruísmo, permite aos humanos leitores o usufruto daquela leitura.  

Há diferença entre os que escrevem corretamente e os que escrevem bem. Os primeiros são bons alunos de português, disciplinados, conhecem e aplicam as regras gramaticais. Amigos do hífen, sinal feito para humilhar, não erram na ortografia nem na concordância. Escrever bem, regra obrigatória para os cronistas, é mais do que juntar sujeito, verbo e predicado numa frase de forma correta. Não há receita pronta para uso, mas cronista não se improvisa. Toma-se como ponto de partida a lição da Mário de Andrade: “Ninguém escreve para si, a não ser um monstro de vaidade. A gente escreve para ser amado, para atrair, encantar.”  

Junte a esses condimentos uma boa pitada de estoicismo. Lembrar que a próxima crônica começa no segundo seguinte ao ponto final da anterior. O leitor pede bis, se você o agradou. Ou nunca revisitará a página na qual jaz a crônica da morte anunciada pela ausência de empatia. Finalmente, o tempero essencial: ser cronista implica trafegar com sensibilidade pela longa estrada do tempo. Apontar no mapa da literatura o território emocional de Pasárgada, navegar nos mares de Fernando Pessoa, tropeçar nas pedras de Carlos Drummond, ouvir o coaxar dos sapos de Manuel de Barros.  

Lembro do meu tempo de jornal. Coube-me, certa vez, revisar o texto de um cronista de minha admiração. Os escritos diante dos meus olhos continham singelas imperfeições ortográficas. Bobagem! O importante era a força da mensagem que surgia naquelas linhas, insubstituível porque a palavra lançada sobre o papel deve ter a alegria da paixão, o luto das perdas, as vicissitudes e os sonhos da vida. Os que sabem aplicar corretamente o hífen, a crase e a vírgula não precisam brigar comigo, que sou da paz e não desejo ofendê-los. Mas reforço os aplausos para aqueles que conseguem domar a palavra e desenham com as letras a flor e o rio, a lágrima e o riso, o abraço e o adeus. Enfim, as coisas do mundo, como diria Paulinho da Viola. 

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