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O que matou os 28 de Jacarezinho?

Felipe Sampaio
Diretor-executivo do Centro Soberania e Clima; ex-chefe da assessoria do ministro da Segurança Pública

Publicado em: 10/05/2021 03:00 Atualizado em: 10/05/2021 07:01

Não há política de segurança pública exitosa que resulte em 28 mortos num bairro densamente habitado. Eram traficantes? Os agentes defenderam-se? Havia fuzis? A polícia foi surpreendida? O território é violento?

Foram dez meses de planejamento gastos (por quem?) para elaborar uma investida que expôs a vida de policiais, moradores e suspeitos. Nesse tipo de episódio, o culpado antecede a ação (quem ordenou?). Depois que a coisa sai do controle, diria Paulinho da Viola, “cada um trata de si, irmão desconhece irmão”.

O primeiro equívoco está na ideia de que “o território é violento”. Isso nos leva a uma segunda distorção, “o território é inimigo”. Estão aí os fundamentos para que toda ação policial tenda a seguir padrões militares.

Nada contra a doutrina militar. Trabalhei no Ministério da Defesa, fiz grandes amigos e ainda hoje faço trabalhos gratificantes com eles.

O problema aqui é que a política de segurança pública não pode se orientar pela doutrina das Forças Armadas, que, por sinal, e com acerto, discordam de que devam se envolver em operações policiais, por saberem que o ensinamento das suas escolas de guerra não serve para o dia a dia da segurança pública.

Governos e polícias estaduais erram ao estabelecerem que determinadas comunidades são violentas e, portanto, territórios inimigos. Tal premissa leva à conclusão de que certa região só pode ser pacificada por meio de invasões segundo a cartilha militar dos campos de batalha.

Essa visão de segurança é explosiva. Nossa polícia é uma das que mais matam, e que mais morrem. Depois que começam os tiros ninguém controla a adrenalina. Em território inimigo não há inocentes.

Policiais urbanos não são treinados e equipados para o conflito militarizado ao qual são lançados pelos seus superiores. Sob fogo cruzado, atiram a esmo, invadem casas como se fossem abrigos de soldados inimigos. Não é à toa que um morador do Jacarezinho disse: “Eles pensam que estão no Iraque”. E pensam mesmo.

No final, restam os mortos e sobrevive a desigualdade social. O mapa da desigualdade das cidades tem interseções com o mapa da insegurança. A pobreza e a criminalidade vivem nos mesmos locais que vemos como territórios inimigos.

Quem morre, e quem mata, são rapazes negros, pobres, desempregados e sem educação. Nascem e vivem nos mesmos territórios inimigos em que os policiais que são enviados nessas cruzadas às avessas, expondo-se a morrer ou matar.

O mito do bandido bom é bandido morto, da tolerância zero, reflete dois problemas estruturais: i. A incapacidade das instituições de estabelecer a paz e o desenvolvimento nas áreas sob a sua responsabilidade; ii. O preconceito de classe, não raro, contra os pobres que vivem nos tais “territórios inimigos”.

Pobreza e criminalidade são vizinhas. Pobreza e pele escura são siamesas. Isso quer dizer que jovens negros pobres são mais vulneráveis à violência e à sedução das aventuras ilegais, e não que pobres são violentos.

Centenas de áreas do Rio vivem sob governos paralelos, onde mais de um milhão de pessoas ainda aguardam há séculos a chegada do Estado.

Nesse cenário, quando um jovem é preso ou morto, a verdadeira guerra, contra a exclusão social, já fora perdida muito antes. Cabe ainda aos policiais e à sociedade conterem seu sentimento de linchamento social e vingança contra as comunidades vulneráveis.

Por fim, não menos importante, esse pensamento dá pretexto a ideologias truculentas e antidemocráticas, que se aproveitam da insatisfação geral com a insegurança para se apresentarem como solução ilusória para problemas históricos complexos.

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