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Meritocracia e Desigualdade

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 03/05/2021 03:00 Atualizado em: 03/05/2021 06:08

A ascensão do populismo de direita, com líderes como Trump, Erdogan, Johnson, Orbán e Bolsonaro, gerou intenso debate sobre suas causas. Uns enfatizam os ressentimentos dos que foram deixados para trás (Ivsen and Soskice, Democracy and Prosperity, 2019). Os perdedores da globalização. Ultrapassados pela sociedade do conhecimento. Atados aos setores de baixa produtividade. Vítimas do aumento da desigualdade. Outros enfatizam a dominância das emoções alavancadas pelos conteúdos das redes sociais e seus algoritmos que segregam as pessoas em bolhas (Davies, Nervous States, 2019). Uma resposta dos progressistas para superar o populismo xenófobo tem sido a ênfase num liberalismo que acena com a ascensão social. Mais especificamente, a promessa de que todos poderiam, a partir de seus méritos e esforços, ascender às posições que lhes garantam uma vida decente e valorizada. Nos EUA, essa tradição sempre foi forte. O sonho americano. O Partido Democrata, com os Clinton e com Obama, governou acenando para o resgate de um modelo em que todos poderiam ascender. A ênfase posta no mérito individual. A educação, mais especificamente a obtenção de diplomas nas universidades, servindo de passaporte para a ascensão econômica e social. Ocorre que as estatísticas revelam que esse sonho é ilusório. Não há lugar para todos nessas posições. 70% dos americanos não têm diploma universitário. Todas as estatísticas mostram que a desigualdade só fez crescer. Evaporou-se a anterior complacência com a desigualdade que a aceitava sob o argumento de que, pelo mérito individual, qualquer um poderia conseguir o sucesso. Independentemente de classe social ou privilégios de casta. Alemanha, Canadá, países escandinavos, com menos desigualdade, hoje têm mais mobilidade social que os EUA. A ascensão ficou restrita aos poucos que conseguem chegar às melhores universidades. Esses poucos, os “bem-sucedidos” passaram a acreditar que o próprio sucesso se deve somente aos seus méritos. Outros fatores que vão além do próprio controle foram por eles “esquecidos”. Como a sorte do ambiente familiar, as conexões, os recursos materiais para frequentar melhores escolas e cursos específicos preparatórios. Além da mera sorte de que seus talentos são requisitados pela sociedade. Os que não tiveram as mesmas sortes, oportunidades e alavancagens percebem que o “sucesso” da minoria tem muito a ver com esses fatores. Aqueles que batalham duro, pegam quatro ônibus para ir trabalhar e ganham uma merreca sabem que outros vivem vidas diferentes da sua não necessariamente porque se esforçam mais.

Uma outra explicação para a captura do ressentimento pelo populismo acaba de ser avançada por Michael Sandel, professor de filosofia política da Universidade Harvard. Em seu último livro (The Tiranny of Merit, 2020), ele examina os efeitos do argumento da meritocracia. E mostra como a sociedade ocidental hoje está prisioneira dessa meritocracia. Vendo que partidos progressistas como os Democratas nos EUA e o Trabalhista no Reino Unido perderam muito da tradicional base de trabalhadores brancos, Sandel avança a explicação de que essas bases se sentiram abandonadas. Não apenas materialmente, mas também no reconhecimento sobre seu papel social. Como esses partidos foram capturados por elites acadêmicas e tecnocráticas, eles absorveram a velha tese meritocrática. Que, na essência, deixa de valorizar os que não conseguem as credenciais vistas como as únicas meritórias. Mas, lembra Sandel, o debate sobre mérito remete à indagação: o bem sucedido conquista o sucesso apenas por si e, portanto, merece-o isoladamente? Ou a prosperidade deve ser atribuída a fatores além do nosso controle?  Quanto mais pensamos de modo autossuficiente o nosso sucesso como produto apenas do nosso esforço, menos razão enxergamos para reconhecer o acaso e a participação dos outros. E a da própria coletividade. Isso gera arrogância do lado dos “vencedores” e baixa-estima do lado dos “perdedores”. Sobre os primeiros, Sandel lembra que muitos jovens hoje são “preparados” obstinadamente para a competição por vagas nas melhores escolas e faculdades. Vivem sob estresse, ansiedade, depressão e, às vezes, até recorrem às drogas ou ao suicídio. Vítimas dos “pais helicópteros”. Quem não se recorda da colega de faculdade que se preocupava mais com as notas dos colegas do que com o próprio aprendizado? Por isso, também sofrem efeitos negativos da tirania da meritocracia. Os segundos precisam de muita força interior para não se sentir culpados por não terem conseguido as posições consideradas de sucesso. Daí surge a pergunta: é positivo um modelo que tiraniza tanto os supostos vencedores quanto os perdedores? Na próxima coluna, continuo com Sandel, analisando as consequências nefastas da tirania da meritocracia e as saídas que podem ser tentadas.

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