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O bairro das duas caras

Og Marques Fernandes
Ministro do STJ e ex-repórter do Diario de Pernambuco

Publicado em: 27/04/2021 03:00 Atualizado em: 27/04/2021 05:44

O Bairro do Recife tinha duas caras, ambas sinceras. Durante os dias, o lufa-lufa de pessoas, carros e ônibus percorrendo as artérias e despejando gente no comércio, agências bancárias, representações e escritórios das usinas. No porto, com seus navios e estivadores, através da exportação do açúcar, Pernambuco falava para o mundo, como no jargão da rádio. Nós só não somos perfeitos porque modestos.

A noite era dos boêmios e das mulheres da vida, como se dizia respeitosamente. Dos restaurantes e cabarés de radiolas de ficha. Dos letreiros de neon, do uísque contrabandeado e da cachaça. Do regaço acolhedor das prostitutas, a conceder mentiras sinceras para homens tristes e meninos jejunos nas coisas do sexo. Risonha algazarra daquelas mulheres que eram de tantos, mas que sonhavam por um marinheiro ou fazendeiro que as levassem dali para uma terra distante feita de ilusão, como num romance de Jorge Amado.

Quem percorresse as ruas do lugar durante o dia, podia ver aquelas meninas nas sacadas de alguns lupanares. Em regra, cinderelas transformadas em abóboras. Sem rouge ou batom, a conversarem com outras do lugar. Às vezes, investiam na caçada de  transeuntes,  para quem gritavam insinuantes, coleta de algum extra.

Não conheci a face noturna do Bairro do Recife, que foi o lugar mais feérico das noites do Brasil, segundo o Oliveira, um amigo que tem curriculum suficiente para merecer credibilidade. Gente fina, desses que não se metem em confusão, bom de dança e de papo, Oliveira chegou a conseguir emprego num banco do bairro somente para emendar a noite com o dia sem ter que andar muito.

Às 18h encerrava o trabalho para começar o verdadeiro expediente. Trocava de roupa e seguia uma lógica própria do boêmio profissional. Começava por bater o ponto com os amigos nos bares que fechavam mais cedo. Era o momento de enxaguar o estômago com uma pilsen bem gelada enquanto se discutia literatura ao sabor de um tira-gosto de peixe frito ou camarão.

Notívago da boa paz, certa vez Oliveira levou um susto. A radiola de ficha tocava pela décima vez um forró de Jackson do Pandeiro que um fã do cantor paraibano havia renitentemente selecionado. Veio o aviso – “se botar esse disco de novo eu dou um tiro”. Era um abusado e intolerante frequentador, que nesses lugares não é possível selecionar a freguesia. Foi tarde. Quando o cantor esbravejou “esse jogo não pode ser um a um“, foi bala pra todo lado. Somente a radiola se feriu. Lesão pérfuro-cortante no alto-falante. Nessa noite, Oliveira saiu sem pagar, como tantos outros que correram, mas, honesto como é, no outro dia cedinho quitou o pendura.

Se a noite estrelada era de lua cheia, cabia uma visita ao Flutuante, famoso barco convertido em verdadeiro salão de festas. Ficava ancorado no Capibaribe, em frente à Rua 1º de Março. Ali, um cantor romântico trajando smoking dava o tom elegante à noitada atacando de bolero, enquanto damas, em mesas estratégicas, aguardavam o convite dos dançarinos, tudo registrado num cartão de despesas.

Daí em diante, dependendo da química do casal, fosse o que Deus quisesse porque Oliveira é discreto. Nessas ocasiões, ele costumava voltar alegre ao banco, onde era esforçado escriturário, nos primeiros raios do sol. Tomava uma ducha fria, tirava um cochilo num quartinho dos fundos e às nove da matina, com o sol dourado do lugar, estava disposto para começar o trabalho. O bairro das duas caras completara o seu ciclo de magias.

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