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Uma prisão didática

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 22/02/2021 03:00 Atualizado em: 22/02/2021 06:01

O Plenário do STF, o da Câmara, a mídia e a opinião pública uniram-se na condenação ao vídeo do deputado Daniel Silveira, cujo cérebro é inversamente proporcional aos músculos marombados. O presidente Bolsonaro abandonou-o, embora seu filho tenha votado contra a prisão. O deputado brutamontes fez do mandato uma plataforma de incitamento ao ódio contra as instituições democráticas e as minorias. Pregador das ideias da extrema direita que capturou o (mau) humor nacional nas eleições de 2018. O valentão miou fino quando viu que seu ídolo o abandonara. Foi mantido preso com os votos da oposição, mas também com os da velha política contra os quais ele e Bolsonaro se elegeram. A Câmara sintonizou-se com a sociedade saudável que sabe terem limites a imunidade parlamentar e o direito à livre expressão.

Uma primeira lição do episódio tem a ver com a esperteza do presidente. Embora ainda conte com o apoio de um terço dos brasileiros, ele vai se distanciando dos núcleos duros que catapultaram sua ascensão à presidência. A cada dia rompe compromissos. Os de combate à corrupção quando demitiu Moro e incentivou o procurador-geral da República a desmontar a Lava-Jato. E quando se viu impotente para impedir a prisão do tal Queiroz, o seu miliciano de estimação. E quando anteviu os riscos penais a que estão expostos os seus filhos. Os compromissos da pauta liberal também foram esquecidos. A intervenção na Petrobras lembra as de Dilma, contra quem invectivava ferozmente na campanha. O combate à velha política foi para as cucuias quando ele se abraçou com o Centrão que fingia odiar. Que não se enganem os que ainda o veneram. Ele só pensa naquilo. Não hesitará em abandonar quem quer que seja para se safar. Imagine-se o que deve estar pensando o deputado valentão depois de ter sido abandonado.

Quanto ao STF, talvez seja bom não confundir o apoio que recebeu nesse episódio. Parlamento e sociedade, ao apoiar a prisão do deputado, em verdade defenderam a instituição judicial em abstrato. Isso não quer dizer que endossem os muitos erros cometidos pelos membros do STF todos os dias. Até as paredes do mundo jurídico comentam que a atual composição é a mais fraca que o STF já teve em toda a sua história. Intelectual, moral e institucionalmente. Como se estivessem acima da sociedade, os atuais membros vêm abusando do direito humano ao erro. Fora dos autos, opinam sobre tudo e todos. Como se fossem atores políticos de baixo nível. Ou celebridades que se deslumbram com as próprias imagem e voz no Jornal Nacional.

Nesse caso da prisão do deputado, não se deve esquecer que o próprio instrumento utilizado padece de um vício de origem. O ministro Alexandre de Moraes, mais uma vez, usou o Inquérito nº 4.781, instaurado pelo então presidente Toffoli a partir de uma errônea interpretação do art. 43 do Regimento Interno da Corte. Aquele que permite a instauração de ofício de inquérito contra ato cometido na sede do tribunal (preceito que visa a proibir desordens no recinto físico do tribunal). Ademais, o Inquérito nº 4.781 confunde em um só ente a vítima, o investigador, o acusador e o julgador. E, assim, atenta contra o sistema penal acusatório previsto no art. 129 da CF, que separa as funções de acusar e julgar. Sobre ter relator designado sem sorteio, em afronta ao art. 66 do RISTF. Em honra ao tribunal e ao adágio de que a unanimidade não é inteligente, lembre-se que um de seus ministros, o hoje decano Marco Aurélio, em voto solitário no julgamento da ADPF nº 572, já alertara o tribunal sobre as ilegalidades do Inquérito.

Por isso, a prisão do deputado poderia ter seguido outro procedimento. Que não usasse o inquérito viciado. Verificado o crime, o ministro Alexandre de Moraes, ou qualquer outro ameaçado de morte por linchamento, poderia formular a notitia criminis à titular da ação penal, a Procuradoria Geral da República. Esta proporia a ação penal perante o STF. Na denúncia que inicia a ação penal, seria pedida liminarmente a prisão preventiva ou provisória. Aí o ministro sorteado relator poderia deferir a ordem de prisão. Ato contínuo, deveria pedir que a Câmara dos Deputados, por força do art. 53, § 2º, da CF/88, confirmasse ou rejeitasse a prisão. Complicado? Esse é o procedimento da CF. O mesmo resultado teria sido atingido, mas sem que o STF mais uma vez fizesse uso de um inquérito que está errado desde o nascedouro. E que ameaça princípios e procedimentos constitucionais. Quem garante que o ministro relator não saia por aí mandando prender quem o critique ou desagrade? Que a chancela da prisão do deputado não seja por ele confundida como uma autorização para punir de ofício quem ele bem entenda.

Resta agora acompanhar o desfecho da prisão. Mas também o processo de cassação aberto pela Mesa Diretora da Câmara. Esperemos que o apagar das luzes não permita que os colegas do valentão que mia salvem o seu mandato. Vamos ficar de olho para que ele seja cassado exemplarmente. Que o episódio também sirva para que os membros do STF entendam que seu comportamento tem consequências para a pedagogia da vida institucional do país. Como o Parlamento da velha política que a toda hora é atacado, o STF precisa refletir sobre por que recebe tantas críticas. E por que atrai o ódio revelado pelo deputado falastrão.

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