Diario de Pernambuco
Busca
Tia Madrinha

Vladimir Souza Carvalho
Magistrado

Publicado em: 06/02/2021 03:00 Atualizado em: 06/02/2021 06:26

Tia Madrinha fazia renda de bilro. Sentada no chão, a almofada à frente, papelão, linhas, alfinetes, espinhos de mandacaru, e lá ia ela embaralhando tudo, mudando a posição dos alfinetes, dos bilros e dos espinhos, o olhar atento na movimentação de todas as peças, para, enfim, dali, sair a renda pronta. Era o seu ganha pão. O cachimbo ficava no chão, ao lado. Eu, calado, morria de curiosidade vendo o espetáculo que as suas mãos proporcionavam. Era tia de mamãe, única irmã de vovô Aristides. Vovó Lilia só tinha um irmão.

Nela, uma fartura de nomes. No registro, Maria Rita de São Pedro. Para os sobrinhos e sobrinhas, Minha Tia, por ser a única tia que tinham. Para os sobrinhos-netos, Tia Madrinha, por ser assim que a primeira sobrinha-neta, Alba, foi ensinada a lhe chamar, e todos nós, sobrinhos-netos, passamos também a proceder. Papai a tratava por dona São Pedro.

Era solteira. Morava na Rua das Flores, casa de quintal longo, onde conheci a manga Maria, mangueira de galhos baixos. Ao redor do seu tronco, ela cultivava Maria João Gomes, que papai apreciava, e, entre o pátio e o quintal, uma pitangueira, que eu me sentava no muro e me enchia. Também, coqueiros e pitombeira. Aí derrubaram metade da casa para transformar o bequinho do Cemitério em avenida. Nenhuma indenização foi paga. A casa de Tia Madrinha ficou pela metade, cumprida e estreita, ela assistindo, de cachimbo na boca, calada, a derrubada de metade da casa, indiferente aos nomes de vitalina velha que Euclides, ao longe, apregoava.

Papai foi o filho que ela não teve, passando três vezes ao dia em sua casa, para ver se precisava de alguma coisa. À noite, muitas vezes, o acompanhei em visitas que lhe fazia, e foi aí que tomei contato com O Cruzeiro, gastando meu tempo em folhear a revista, página por página.

Os tempos tranquilos cessaram quando a moléstia fatal surgiu, deslocamentos para alguns centros médicos, onde o desengano marcou presença. Retornou para morrer, o que ocorreu depois de algum tempo. Foi sepultada, pela manhã, em caixão de madeira, mortalha que ela mesma preparou. À tarde, quando passei por sua casa, vindo do ginásio, onde dava aulas a professoras do curso primário, parei para ver a casa fechada. Só ali senti a dor de sua morte.

MAIS NOTÍCIAS DO CANAL