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Da lama ao caos

Alexandre Rands Barros
Economista

Publicado em: 06/02/2021 03:00 Atualizado em: 06/02/2021 06:26

Em 1994, Chico Science lançava seu álbum intitulado Da Lama ao Caos. Nele, preconizava que é se desorganizando que consegue se organizar. Como comum em obras artísticas, diante da tragédia, em que caminhamos da lama ao caos, lança um grito de esperança com a possibilidade de organização posterior. O Brasil tem trilhado o caminho da desorganização. Vivemos atualmente uma nostalgia medieval. Talvez a ausência de uma vivência de nossa formação cultural luso-africana ao longo da Idade Média (acabou em 1453) justifique-a. Hoje consolidamos um período medieval nostálgico. As crenças se sobrepõem à ciência (cloroquina, Terra plana e outras bobagens), o fanatismo religioso ganha força de expressão (Damares e Flordelis) e o autoritarismo com associação entre Estado e religião passa a ser o sonho de muitos. Talvez esse seja o que Chico Science classificou como o estado de desorganização ou a lama.

A semana foi de grandes mudanças qualitativas no cenário político, no sentido da “desorganização”. O procurador-geral da República finalmente conseguiu decretar o fim da Lava-Jato e o esvaziamento da luta contra a corrupção no país. Além disso, o Centrão transformou sua já existente hegemonia política em poder efetivo na Câmara dos Deputados. Ou seja, trilhamos a rota da lama ao caos. Os medievais pavimentaram o caminho para a turma do “vale-tudo, vale o que vier, vale o que quiser” (Tim Maia) tomarem conta do Brasil. Custa-me a crer que de fato o Brasil está cedendo ao apelo de Cazuza e está “mostrando a sua cara”. Prefiro acreditar que a mensagem de esperança de Chico Science prevalecerá e vamos nos organizar.

A única notícia boa é que o Centrão sinalizou para uma complacência inicial com a pauta do Brasil (PECs do ajuste fiscal e auxílio emergencial e combate mais sério à pandemia). Isso poderá trazer avanços iniciais, até os congressistas do Centrão perceberem que foram ludibriados nas negociatas para apoiar o novo presidente da Câmara (a soma das promessas não cabe no orçamento). Aí as pautas-bombas e outras chantagens deverão moldar as relações entre o Congresso e o Executivo. Cabe-nos, então, torcer para que, pelo menos, haja alguns avanços nos próximos meses, antes do fisiologismo e das pautas medievais (liberação de porte de armas, escola em casa, autorização para militares matarem, etc.) corroerem de vez o governo. As PECs emergencial, do pacto federativo e dos fundos, além da reforma administrativa, podem ter alguma chance de evoluir antes do caos. As chances da reforma tributária são menores.

No cenário internacional, a decretação de Joe Biden do fim do unilateralismo e volta da diplomacia é uma boa notícia para o mundo, mas perigosa para o Brasil, que assumiu nos últimos dois anos a postura de lacaio incondicional da política externa de Trump. A esperança, ao menos, é que tal mudança possa forçar a ajustes da nossa política externa e o próximo governo herde uma situação de menos ostracismo internacional, no qual estamos sendo afundados. Além disso, só nos resta ter esperança de que possamos trilhar o rumo profetizado por Chico Science, que nos desorganizando possamos nos organizar. Ou seja, que as tendências acenadas pela semana contribuam para que em dois anos possamos pensar em nos organizar e vencer o caos.

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