Diario de Pernambuco
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Se quiseres ser cego, serás

Fernanda Braga
Advogada e procuradora-chefe da Fazenda Estadual

Publicado em: 25/11/2020 03:00 Atualizado em: 25/11/2020 06:26

A contemporaneidade é, com recorrência, comparada às distopias de Orwell (1984), de Atwood (O conto da Aia) e Huxley (Admirável Mundo Novo). Cada uma delas dialoga, de fato, com aspectos e questões do tempo presente.

Mas, talvez, nenhuma delas atinja tão profundamente a acurácia de Saramago, na sua distopia epidêmica Ensaio sobre a Cegueira. Li o livro há alguns bons 15 anos e surpreendi-me refletindo sobre ele agora. A explicação da recorrência subconsciente é simples. Em linguagem alegórica sobre solidariedade, papéis de gênero e outras questões vitais à humanidade, Saramago nos fala de uma epidemia altamente contagiosa de “cegueira branca”, sem explicação e sem controle. Olhos que veem, mas não enxergam, como se estivessem abertos em uma grande piscina de leite. Os acometidos pelo mal são “isolados” do restante da população,  no esforço governamental de cuidar da saúde pública. As ordens sanitárias não são espontaneamente cumpridas. Estão todos cegos, exceto uma personagem, que omite suas capacidades para evitar se tornar escrava dos que não veem – subvertendo, assim, o senso comum do ditado “em terra de cego, quem tem olho é rei”.

O egoísmo e a indiferença que derivam do individualismo, a crueldade decorrente da racionalização excessiva e das disputas de poder, a subjugação sexual das mulheres, a violência, a existência gregária da humanidade e a importância de refletir sobre o futuro das gerações seguintes são questões disparadas, com ironia ácida, contra o leitor que deseje enxergá-las.

Saramago não está mais entre nós para comprovar sua distopia e suas teses. Teria feito 98 anos no último dia 16. Merece, como presente, que lhe seja, postumamente, reconhecido o crédito do oráculo de sua genialidade. É imortal, e suas lições reverberarão por “todos os dias infindáveis do futuro”.

Apesar da forte crítica filosófica, Saramago nos lembra que “o medo cega”, mas a cegueira pode ser superada pela esperança, que “a felicidade e a tristeza podem andar unidas, não são como a água e o azeite” e “diante da morte o que se espera da natureza é perderem a força os rancores”. Olhando-nos de onde estiver, Saramago nos indaga, se continuaremos cegos, “cegos que veem, cegos que vendo, não veem” que a existência é uma tarefa coletiva.

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