Diario de Pernambuco
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Os doces de Mário, jaboticabas e araçás

Luzilá Gonçalves Ferreira
Membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 01/09/2020 03:00 Atualizado em: 31/08/2020 21:45

Um amigo me envia o longo texto de Mário de Andrade escrito no final da vida, espécie de belo testemunho de quem viveu intensamente os quarenta e poucos anos que lhe seriam dados, pressentindo que não chegaria aos cinquenta. O que aconteceu. O amigo me aconselha a enviar o texto de Mário a quem tem, ou se aproxima dessa idade, pois sempre não faz mal a que se pense nessas coisas. Para início de conversa, escreve Mário: “Contei meus anos e descobri que tenho menos tempo para viver a partir daqui, do que vivi até agora”. O que, imagino, deve ser o caso da maioria dos nossos leitores. Que conhecem a biografia  de Mário, sua atividade intelectual – professor de música, poeta, contista, romancista, crítico de arte, alto funcionário do Ministério da Cultura, responsável por realizações de que até hoje somos devedores, como a criação do Iphan, autor de centenas, milhares talvez, de cartas a amigos, nas quais esparrama sua capacidade de amar, de animador cultural, sua grande paixão pelo Brasil, que ele analisou, pensou, como pouca gente o fez até hoje. E Mário confessa: “Eu me sinto como aquela criança que ganhou um pacote de doces. O primeiro comeu com prazer. Mas quando percebeu que havia poucos, começou a saboreá-los profundamente.” Igual sentimento é descrito por Rubem Alves, ao comer jaboticabas, devoradas com avidez e logo depois, degustadas lentamente, cascas e caroços. Em seguida, Mário escreve não ter mais tempo para suportar pessoas que não cresceram apesar da idade cronológica, que ficam inchadas por seus triunfos, que fogem às suas responsabilidades, que não defendem a dignidade humana, ah querido Mário, como pareces atual. Discorre sobre outras situações do dia a dia e conclui: “Nós temos duas vidas. A segunda começa quando você percebe que só tem uma”. Nós temos aqui em casa um pé de araçá. Plantado há anos, nunca havia dado frutos, cercado que estava, por outras árvores.  Lembramos das matas de araçás selvagens, fruta em extinção, sobretudo agora que projetos loucos ameaçam a Mata Atlântica. Cresciam em Itamaracá, na beira da estrada para São Lourenço da Mata. E em Olinda, depois do circular do bonde do farol, e que comíamos após o banho de mar, ao lado dos cajus que também cresciam na mata.  Resolvemos cortar,  com a morte na alma, o enorme pé de azeitonas, ao lado do arbusto, apoiados pelo dizer bíblico, toda árvore que não dá fruto é cortada e lançada no fogo. Pois bem, na semana passada colhemos cinco araçás. Para minha filha, de passagem entre dois aviões, foram colocados num saquinho de plástico, devidamente banhados em álcool 70. E dela, com a devida máscara, ouvimos a exclamação: “Araçás! Do pé!” As pessoas às quais encaminhei o texto de Mário, enviado por meu amigo Leonardo Sampaio, respondem, entre outras coisas: “Estamos sim, comendo os doces...”

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