Diario de Pernambuco
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De pão cilindro e de pedra

Vladimir Souza Carvalho
Magistrado

Publicado em: 12/09/2020 03:00 Atualizado em: 12/09/2020 06:35

Mamãe, a partir das quinze horas, distribuía um pão cilindro, graúdo, amanteigado, ainda quente. Bosco e Alba devoravam logo. Eu, simplesmente, não o comia, apesar da atração que sobre minha guloseima o pão exercia. Aí começa o meu inferno de dúvidas. Guardava o meu debaixo do colchão da minha cama. Ninguém via. Dia a dia, ia acumulando mais pão, colchão de capim, a se adaptar ao pequeno volume do pão. Um dia, sempre há um dia, o cadáver boiou na fonte: o esconderijo foi descoberto. Os pães, transformados em pedras, foram levados para a frente da casa – morávamos, à época, no sítio de vovô Aristides -, os dois irmãos ficaram jogando pão um no outro, e eu, bem, boca fechada, sem dar a menor explicação, assistindo à extraordinária peleja deles, rindo e correndo, os pães rolando no gramado, os meus pães.

Se não dei nenhuma justificativa naqueles idos, há sessenta e cinco anos, imagine hoje, quando o fato se esfarela na caminhada pelo tempo, sem que eu consiga arranjar uma explicação lógica, que, aliás, me convença do motivo que me levou a assim agir, deixando de aproveitar o pão, que era sumamente gostoso, para guardá-lo, sem noção de que, escondido, estaria perdido, sem serventia alguma, todos eles, de alimento, se fantasiando de pedra, não tendo cumprido o destino reservado que era de encher a barriga de alguém, ou seja, a minha.

Já tentei ir até o fundo do poço na busca de explicação razoável, que me convença e satisfaça a curiosidade. Em vão. A quem conto, a reação se transmuda em riso, talvez a me crismar de apalermado, mesmo porque não encontro outro termo mais preciso. Resta de toda a história que, no fundo, sem planejamento, foi um ato a merecer registro em cartório, pela semelhança com o gesto da rainha portuguesa, elevada ao patamar de santa. Enquanto ela, que levava pão para os pobres, surpreendida pelos soldados do rei, desejosos de verificar o que estava no sexto que carregava, transformou o pão em rosas, eu, igualmente com o pão, sem desafiar edito real, o tornei em pedra. Poderia até alçar a condição de santo, que dispenso, por ser muita honra para quem não foi nem coroinha. De uma forma ou de outra, a comparação até me faz ver que dei ao pão um fim que ninguém, na vida, podia imaginar ser possível. Uma vitória de Pirro...

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