Diario de Pernambuco
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A ficção me devolve à realidade

Fernando Araújo
Advogado, professor, mestre e doutor em Direito. É membro efetivo da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas - APLJ

Publicado em: 14/09/2020 03:00 Atualizado em: 14/09/2020 06:29

A  Covid-19 mexeu com todos nós. Perdemos parte da liberdade. Mas por uma causa justa. O poder público determinou o chamado afastamento social. Proibiu aglomeração e nos obrigou ao uso de máscaras.

Sou até do tipo que gosta de sair pouco, mas os meus passeios às livrarias, idas ao cinema e ao teatro eram sagrados. Mergulhei no “Novo Normal”, de dar aulas virtuais, fazer audiências virtuais e todos os pagamentos mensais de modo também virtual.

O noticiário é estressante, com a imagem de tanta gente entubada, de papo para o ar, ou encolhida nos leitos dos hospitais.

Fiquei privado de prestar as últimas homenagens a parentes e amigos mortos nesse período que ainda perdura. Passei a me sentir numa verdadeira prisão domiciliar, o que ficou tão real quando ganhei, no Dia dos Pais, um relógio que me vigia: mede meus passos, minha pressão, meus batimentos cardíacos, aponta minha localização, os e-mails que recebo e passo e os telefonemas. Se não é uma tornozeleira, é pelo menos uma pulseira eletrônica.

Mergulhei nas leituras. Quando cansava do livro técnico, ia para a ficção, principalmente os clássicos, relendo muitos deles. Mas de quando em vez, deparava-me com uma total “desorientação espacial” – o que às vezes acontece com os pilotos de avião, que confundem voar em direção ao chão pensando que estão subindo.

De fato, eu não sabia se a realidade era ficção ou se a ficção era realidade. Grito de parentes em porta de hospital ao ver o corpo de um ente querido vencido pelo coronavírus em muito se assemelha ao pavor de uma mãe urrando “Ah, meu Deus! Ah, meu Deus!”, olhando o filho numa cama metamorfoseado num inseto monstruoso (Gregor Samsa, personagem de Kafka, em A Metamorfose). Ou um homem apavorado (Josef K, também personagem de Kafka, em O Processo), sem saber por que está processado e quanto tempo levará até esse pesadelo passar.

E a insegurança jurídica? Não são poucos os que sofrem com isso. Todavia, essa questão é antiga. Já está em Medida por Medida, de Shakespeare. Não são poucas as vezes em que a lei perde a sua dureza, o seu sentido inflexível. Contorce-se como uma régua de Lesbos (ilha grega), nas mãos do aplicador. Uns ficam na prisão, mesmo doentes, outros vão para casa com a mulher para não adoecer. É isso.

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