Diario de Pernambuco
Busca
Planejamento como instrumento de mudança

Paulo Câmara
Governador de Pernambuco
opiniao.pe@diariodepernambuco.com.br

Publicado em: 27/07/2020 03:00 Atualizado em: 27/07/2020 05:58

A passagem, neste mês de julho, do centenário de nascimento de Celso Furtado, um dos maiores pensadores brasileiros, nos estimula a refletir sobre a importância do seu trabalho para o Nordeste e o Brasil.

Paraibano do Sertão, formado no Recife e no Rio de Janeiro, esse economista – que também mergulhou na história, sociologia e política – tornou-se cidadão do mundo.  Foi uma das lideranças técnicas da Cepal, professor na França, Inglaterra e Estados Unidos, sem perder de vista sua maior vocação: fazer do planejamento um instrumento de mudança e construção do futuro, servindo de base para um projeto nacional de desenvolvimento.

A atualidade de Furtado é clara, e é urgente a revisão de seus conceitos no Brasil de hoje. Falta ao país, mergulhado em crises sucessivas e simultâneas, um verdadeiro projeto nacional, resultante de um pacto político entre os capazes de convergir para compromissos básicos: democracia, trabalho, soberania, justiça social, respeito à natureza e valorização da diversidade cultural.

O que temos é o contrário. Uma proposta ultraliberal que sufoca Nação e economia, na qual as forças do mercado são responsáveis pela definição do futuro. Esquecem que nenhum país hoje desenvolvido prescindiu da articulação estratégica e dos recursos de Estado para vencer dificuldades e corrigir rumos.

Tais argumentos estavam presentes em Formação econômica do Brasil, de 1958, livro que deu renome a Furtado, traduzido em vários países, com mais de 300 mil exemplares vendidos. Entre outros aspectos da realidade brasileira, lança as bases para a compreensão da grande desigualdade entre as regiões, o que certamente o orientou ao aceitar o convite do presidente Juscelino Kubistchek: elaborar um relatório com proposta de ações do governo federal no Nordeste.

Em 1958, a região era um caldeirão prestes a explodir. Seca no sertão, milhares de famintos invadindo pequenas cidades e trabalhadores rurais expulsos por latifundiários do plantio da cana de açúcar.  A agitação social atraía olhares de observadores internacionais, os mais nervosos alertando que ali germinava uma nova revolução cubana.

Atendendo à solicitação de JK, Furtado coordenou a elaboração do relatório do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste, o GTDN, documento ainda hoje fundamental para entendimento dos desafios da região, e que serviu de base para criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – Sudene. Furtado, seu primeiro superintendente, defendia uma instituição voltada para o planejamento regional, tendo no Conselho Deliberativo espaço de diálogo entre o governo federal, governadores nordestinos, trabalhadores e empresários.

Reunindo servidores públicos comprometidos e de alta qualificação técnica, a Sudene desvelou um novo Nordeste, ao plantar sementes de esperança. Não denegou a miséria nem o escandaloso atraso econômico e a concentração de renda na região. Encarou-os de frente, como obstáculos a serem superados, com planejamento, mobilização social e determinação política.

A Sudene aprofundou as raízes da mudança, entre outras iniciativas, incentivando a formação de seus quadros e de outras instituições estaduais. Pessoas que se tornaram capazes de melhorar o padrão da gestão pública a partir do debate democrático de prioridades. A autarquia dialogou com vários países, compartilhando experiências que contribuíram para a ampliação e modernização da infraestrutura social e econômica nordestina.

A pesquisa foi direcionada para identificar novas possibilidades regionais que lastreassem os planos de industrialização e transformação da velha base agropecuária. O artesanato também recebeu atenção, com o apoio à organização e financiamento às cooperativas.

Em 1962, ao assumir o Ministério do Planejamento no Governo João Goulart, Furtado propôs o Plano Trienal.  Deflagrado o Golpe de 1964, foi cassado por motivos nunca esclarecidos, apesar das tentativas da ditadura de enquadrá-lo em alguma armadilha. Exilou-se no Chile, trabalhando na Comissão de Estudos da América Latina – Cepal, organismo das Nações Unidas. De lá, seguiu para a Europa, só voltando ao Brasil após duas décadas. No Recife, pediu que um amigo o levasse a conhecer a nova sede da Sudene, no bairro do Engenho do Meio. Entristecido com a suntuosidade do prédio, sequer desceu do carro.

Perto de falecer, em 1992, manteve firme o compromisso com o futuro da Nação. Denunciou que o país perdia o trem da quarta revolução industrial e enfrentaria dificuldades de acompanhar o ritmo do novo padrão do desenvolvimento mundial, intensamente articulado com novas tecnologias.

As reflexões, um tanto amargas para quem sempre apostou na esperança, estão em “Brasil: a construção interrompida”, um de seus últimos livros. Talvez o derradeiro alerta que nos legou, no seu jeito rigoroso de escrever e falar, só de vez em quando abrindo um sorriso, quando lembrava dos banhos de mar nas praias de Olinda.

MAIS NOTÍCIAS DO CANAL