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Amados e maltratados

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República. Doutor em direito (PhD in Law) pelo King's College London - KCL

Publicado em: 15/07/2020 03:00 Atualizado em: 15/07/2020 06:13

Kenneth Clark (1903-1983) escreveu um livro intitulado Animals and Men: their relationship as reflected in Western art from prehistory to the present day (Thames and Hundson, 1977). Segundo o autor, o fez a pedido da World Wildlife Fund – WWF. Bendito pedido. O livro, com mais de duzentas imagens de arte variada, muitas delas coloridas, é belíssimo. Forma e conteúdo. O meu exemplar, já usado, comprei em um dos sebos da Oxford Committee for Famine Relief – Oxfam. Bendito o que semeia livros, arte, ecologia e caridade.

Para além da análise da arte apresentada, uma das principais sacadas de Animals and Men é a afirmação, em forma de polida denúncia, de que “nós (a humanidade, frise-se) amamos os animais, nós observamos eles com deleite, nós estudamos os seus hábitos com uma curiosidade crescente; e nós os destruímos”.    

De um ponto de vista histórico, Kenneth Clark primeiramente nos recorda que os homens vêm sacrificando animais aos deuses por milênios, quase como se fosse um dos nossos mais antigos instintos. Isso vem desaparecendo, é verdade, com algumas exceções, inclusive entre nós, infelizmente permitidas pela nossa Suprema Corte (no RE 494601/RS). Esse tipo de oferenda não passa de uma alucinação de grupo. Em nada ajuda na nossa relação com o Criador. E espero que, logo, qualquer um que realize esse tipo de sacrifício seja considerado menos como um louco e mais como um criminoso.

E os homens também maltratam animais em jogos e festividades. As clássicas arenas romanas, com os seus jogos para deleite dos instintos cruéis dos espectadores, são exemplos acabados desse tipo de maus-tratos. Nos dias atuais, é a tourada espanhola o caso mais badalado. Eu já assisti a tal espetáculo. Ele é covarde – pelo que fazem com o animal antes de o “matador” entrar em cena – e cruel. Bom, temos a nossa vaquejada. Mais uma estupidez.

A caça por esporte, legalizada ou não, ainda existe. Segundo Kenneth Clark, ela “parece satisfazer um instinto humano arraigado e tem persistido de alguma maneira até os dias atuais. Ela começou como uma necessidade; o homem primitivo caçava por comida. Mas quando, a partir do pastoreio e da criação, o apetite humano pôde ser satisfeito de maneira mais estável, a caça tornou-se o que ela é desde então, uma exibição ritualizada de excesso de energia e coragem. Ela tem sido intimamente identificada com status social”. Sofisticadamente bárbaro.

Há quem destrua a fauna e a criação por pura ganância. Direta ou indiretamente. Poluição das águas. Um continente de plástico nos oceanos. Desmatamento e queimadas que matam aos milhões. Cativeiro e contrabando de espécies variadas, muitas ameaçadas de extinção. Criação e abate de animais em terríveis condições. Criação e reprodução de animais domésticos, ditos de raça, em sofrimento, visando apenas ao lucro. E uma imensa população de cães e gatos, desassistida, vagando pelas grandes e pequenas cidades. A lista aqui é infinita.

E há, claro, quem maltrate um animal por pura maldade. Para mim, por estes dias, isso ficou muito claro ao ler a notícia – chocante, para dizer o mínimo – de um cão, em Minas Gerais, que teve as duas patas traseiras decepadas a machadadas. Brutal. Hediondo. Sem perdão.

Bom, se devo reconhecer que os sentimentos humanos em relação aos animais parecem contraditórios (medo, ganância, crueldade e indiferença do lado negativo), eu prefiro olhar para eles com respeito, admiração, deleite e amor. À moda de um Leonardo da Vinci (1452-1519), que, segundo o seu biógrafo Giorgio Vasari (1511-1574), “admirava todos os animais, os quais tratava com grande amor e paciência, e isso ele mostrou com frequência, quando, passando por lugares onde passarinhos eram vendidos, tirava-os das gaiolas e, tendo pago aos vendedores o preço pedido, deixava-os voar pelo ar, dando-lhes de volta a liberdade perdida”. Dizem às vezes que eu perco meu tempo cuidando de bichos. Podem me chamar de sentimental. Renascentista ou contemporâneo. Eu não me importo.

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