Diario de Pernambuco
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Tempos difíceis

Luzilá Gonçalves Ferreira
Membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 09/06/2020 03:00 Atualizado em: 09/06/2020 05:46

Uma amiga me telefona. Se queixa: “Não dá para entender, dizem que as coisas estão melhorando, que o pior já passou e, por isso, estão soltando as amarras, permitindo desconfinamentos. E abertura de shoppings. Mas veja  a linha ascendente do número de infectados e de mortos.” Diz que acompanha as matérias sobre o assunto, testemunhos de enfermeiras dedicadas, falas de médicos, de pesquisadores, trabalhando contra o tempo, buscando vacinas e tratamentos. Está de quarentena há mais de dois meses, já leu grande parte dos livros de sua biblioteca, quando voltará a se sentar no terraço do pequeno restaurante da praça, e conversar besteiras com os amigos? Conclui, repetindo as palavras conhecidas ( de quem?): “Eu era feliz e não sabia”.

Enquanto escrevo, são três horas da manhã, a alguns metros de minha janela, alguém passa empurrando uma carroça. Vem de procurar alguma coisa pela rua, certamente, um resto de comida qualquer, em casa não deve haver o que comer. Quando o dia amanhece, pessoas bem vestidas e bem calçadas fazem caminhadas, bicicletas carregam pessoas humildes, empregadas domésticas se apressam as famílias alheias são exigentes e aguardam, programas televisivos de países estrangeiros, entrevistam gente que se pergunta onde passar as férias de verão, mas na TV francesa, passa Morte em Veneza, o belíssimo filme de Luchino Visconti (?), a altíssima e refinada sociedade europeia também vítima da peste. Começo o dia lendo as mensagens de amigos - e nós todos não temos como não cantar loas ao atual milionário que nos deu o computador. Mas é na leitura que nos chega o conforto maior. Arrumando estantes, encontro um livro há muito tempo lido e esquecido, Resistência e Submissão. O autor, pastor e teólogo luterano, nos entrega aqui cartas, anotações e orações, escritos enquanto estava na prisão (de 1943-1945) por  engajamento na resistência ao regime nacional-socialista do nazismo. Durante 23 meses, Dietrich Bonhoefer escreveu essas cartas, alguns estudos sobre ética e poemas, que após sua execução, - enforcamento – alguns meses antes do suicídio de Hitler - os amigos e a família reuniram e publicaram. Estudos de teologia mas sobretudo cartas afetuosas, inteligentes, em que medita sobre o sentido da vida, comenta os grandes eventos da história do mundo, se alegra com o toque dos sinos, a presença de passarinhos nos telhados da prisão, de como as cartas da família ajudam a viver. E nos deixa lições, como esta tão atual: de olhar os acontecimentos da história do mundo “a partir de baixo, da perspectiva dos excluídos, dos que estão sob suspeita, dos  maltratados, dos destituídos de poder, dos oprimidos e dos escarnecidos, em suma, dos sofredores. Para fazer jus à vida”.

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