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Plano Marshall Social: um programa de recuperação socioeconômica

Zeca Brandão
Arquiteto e urbanista, PhD pela Architectural Association School of London e professor associado da UFPE

Publicado em: 01/06/2020 03:00 Atualizado em: 01/06/2020 05:05

Embora não seja novidade pra ninguém, o novo coronavírus escancarou a desigualdade absurda existente no nosso país. Dois universos urbanos inteiramente diferentes estão presentes em todas as capitais brasileiras. Uma cidade oficial com nome, endereço e CPF, e outra paralela e invisível aos olhos do poder público. Diante da tragédia constantemente anunciada, vem a única estratégia de enfrentamento ao vírus: “fiquem em casa”, como se estivéssemos na Suíça, Dinamarca ou Finlândia. Esquecem que aproximadamente 40 milhões de brasileiros vivem em casas minúsculas, localizadas em áreas sem saneamento básico e necessitam de uma renda diária para sua subsistência.

O pior é que, apesar do processo de contaminação ter partido dos bairros ricos em direção aos bairros populares, é provável que as favelas sejam acusadas de serem o epicentro da pandemia e seus moradores culpabilizados por terem desrespeitado o isolamento social. Nesse sentido, parece surgir uma narrativa higienista perversa e perigosa, defendendo o fim desses assentamentos informais. Esse entendimento, além de injusto, representa um grande retrocesso na política habitacional do país, que, desde os anos 90, desenvolve, mesmo que precariamente, programas de urbanização de favelas. Vale lembrar que, caso esse discurso prevaleça, isto não seria algo inusitado, afinal o urbanismo sanitarista já foi utilizado com esse propósito em outros momentos da nossa história. A demolição dos cortiços populares no início do século 20 e a remoção das favelas para conjuntos habitacionais periféricos nos anos 60 são dois exemplos que ilustram o argumento.

A desigualdade sócioespacial não se restringe à escala municipal, onde as cidades formais e informais convivem numa relação conflituosa, ainda que surpreendentemente estável. O desequilíbrio econômico regional, consolidado ao longo dos séculos, também tem se apresentado de forma explícita durante a pandemia. A dificuldade dos estados do Norte e Nordeste no enfrentando da crise sanitária expõe a extrema fragilidade da infraestrutura dessas regiões. Fragilidade essa que pode ser identificada tanto nas condições urbanas das cidades, que favorecem maior contaminação da doença, quanto nos sistemas de saúde pública, que demonstram menor capacidade de atendimento e recuperação dos doentes. Não por acaso, as taxas de mortalidade nos estados do Amazonas, Pará, Ceará e Pernambuco estão entre as maiores do país.

Recentemente, o governo federal anunciou que estava elaborando um plano nacional de recuperação econômica. Na ocasião, foi mencionado como referência o Plano Marshall, concebido pelos americanos durante o pós-guerra e destinado à reconstrução dos países aliados da Europa. Ainda que o uso da palavra oportunidade não seja apropriado ao contexto, é inegável que grandes crises podem gerar grandes transformações. Assim sendo, por que não aproveitamos esse plano para reduzir de forma consistente essas desigualdades, investindo maciçamente na infraestrutura urbana dos territórios mais vulneráveis? Uma espécie de “Plano Marshall Social” que ajude a transformar o Brasil num único país, possibilitando assim que, em outros momentos de crise, os nossos governantes possam impor as mesmas restrições e exigir a mesma obediência a todos os brasileiros.

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