Diario de Pernambuco
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Pandemia x Miséria

Moacir Veloso
Advogado

Publicado em: 04/06/2020 03:00 Atualizado em: 04/06/2020 06:56

João Carlos e Mauricio são amigos e costumavam fazer caminhada juntos, ao final da tarde no calçadão de Boa Viagem. Com o advento da pandemia e a proibição de andar no calçadão, passaram a andar na calçada do lado oposto. Esta mudança fê-los tomar conhecimento de uma realidade sombria e sinistra: a dos moradores de rua. Essa chaga social materializada num considerável contingente de pessoas, idosos; mulheres, adolescentes, crianças e até bebes, agrupados nas calçadas, esquinas, sob marquises, enfim, desabrigados e sem trabalho, padecendo dos sofrimentos, da penúria e da fome, despertou neles intensa compaixão.

Esses desafortunados sobrevivem da piedade dos transeuntes. Embora não peçam ajuda. observa-se nos seus semblantes, expressivos sinais de tristeza, angústia e desalento  como conseqüência das condições subhumanas às quais estão submetidos. São catadores de lixo, alcoólatras, viciados em drogas, deficientes mentais, enfim uma amostra de que a que ponto pode chegar o desprezo, a negligência, e a desumanidade que lhes são dedicados pelo organismo social. Inicialmente João Carlos e Mauricio ficaram chocados, na medida em que viam as absurdas cenas que retratavam essa chaga hedionda.

A política de isolamento imposta pelas autoridades como forma de contenção da pandemia, teve o condão de dar visibilidade as esses seres humanos pois as ruas ficaram desertas. Os moradores com teto se recolheram ao conforto e aconchego dos seus lares. Lá fora, ficaram eles como uma amostra de um dos exemplos mais significativos da barbárie contemporânea. Não procurem culpados. 

A responsabilidade é difusa. João Carlos e Mauricio foram pragmáticos e resolveram fazer sua parte. Uma vez por semana, prepararam uma boa quantidade de sanduíches acompanhados de água mineral e saíram a distribuí-los entre eles. Só o semblante embevecidos e o sorriso de gratidão desses desafortunados foram como um bálsamo para os dois benfeitores. Na sua ação beneficente, cuidaram também de implementar a caridade moral, com eles conversando, ouvindo suas histórias de vida, oferecendo-lhes palavras de conforto e incentivo, para enfrentamento da vida como ela é, e não como deveria ser.

Nas grandes calamidades, a caridade surge através de impulsos generosos como o de João e Mauricio, e esses infortúnios discretos são objeto que a verdadeira generosidade sabe descobrir, sem esperar serem procurados. Também não cogitem em alguma panacéia para a salvação desse inditoso contingente de miseráveis. Passada a pandemia, o status quo voltará ao que era. O povo sairá às ruas e o movimento frenético das relações de produção deixará para trás esse episódio trágico que abalou as estruturas da psiquê coletiva. Esta logo recobrará a sua indiferença culposa. Suas consciências já não são afetadas pela compaixão que passou. As vida continua. As comunidades periféricas já adquiriram luz própria. São células sociais que, embora não infectadas, sobrevivem por força da extraordinária capacidade de adaptação humana. Deus sabe o que faz.

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