Diario de Pernambuco
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Na pandemia, a leveza das crianças

Saulo Moreira
Jornalista

Publicado em: 19/06/2020 03:00 Atualizado em: 19/06/2020 06:36

Ah, as crianças... Quer se desintoxicar de tanta notícia ruim? Observe crianças, brinque com crianças, brinque como se fosse criança.

Acho que a OMS deveria colocar essa minha sugestão nos protocolos de proteção psicológica em tempos de isolamento social, ao lado dos exercícios físicos, meditação e ioga.

Sim, eu sei. É difícil encontrar tempo, paciência e disposição para correr pela casa, rolar pelo chão, falar feito um animatrônico, bancar o cavalo, jogar no smartphone, fazer massinha de modelar caseira, ouvir histórias sobre o poder e as características de personagens fantásticos.

Mas é importante. Acreditem.

Não tive nenhuma epifania para perceber essa necessidade. Dois episódios prosaicos me alertaram para tal.

Artur tinha uns 3 anos quando eu corria pra lá e pra cá com ele num shopping. Era uma área com pouca gente num dia de semana. Dava até para sentar no chão (não havia o novo coronavírus). Eu não percebi, mas um senhor, cabelos brancos e bengala nas mãos, descansava sozinho num banco enquanto nos observava. Quando eu já estava indo embora, ele me chamou e aconselhou baixinho, num tom de voz doce e amigável: “Aproveite. Aproveite porque passa muito rápido”. Agradeci, cumprimentei o senhor e saí caminhando de mãos dadas com Artur.

Em outra oportunidade, quando eu me distraía numa rede social repleta de frivolidades, vi uma frase interessante: “brinque com seu filho enquanto ele quer brincar com você”. Na mesma hora, soltei o celular e fui montar um Lego com Artur. Ele estranhou o interesse repentino, mas gostou da minha presença.

Artur hoje tem 12 anos. É um pré-adolescente. Em seus momentos de lazer, passa horas no videogame (sei que não é aconselhável, mas isso é outra discussão) e já não me chama tanto para brincar. Normal.

Seu irmão, Guilherme, ainda tem 5 anos. E não para um segundo. A todo momento me chama para brincar e eu, sempre que posso, vou. As palavras daquele senhor do shopping e a frase na rede social estão vivas.

É gratificante conviver e observar as crianças. Tenha certeza que você vai ser recompensado.

Outro dia, numa dessas manhãs da quarentena, eu insistia para que Guilherme comesse frutas ou que pelo menos as experimentasse. Depois de falar umas dez vezes que ele iria, sim, comer fruta sob pena de ficar o dia todo sem o tablet, eu, já impaciente com tanta resistência, disse em tom áspero:

- Você vai comer fruta! Estou fazendo tudo para você ter uma alimentação saudável. Escolha agora porque comprei mamão, banana, melão, uva. E fim de papo.

- Tá bom, eu experimento essa aí...

- Qual?

- Essa aí que tu falasse, papai.

- Qual delas, meu filho? Eu disse um monte de fruta...

- A última -, disse, Gui, já chateado.

- Uva? Você já conhece uva. Quer uva?

- Não. Quero indipaco.

Fiquei um tempo pensando. Mas matei a charada.

  - Eu não falei indipaco. Eu falei fim de papo, Guilherme. E isso não é fruta.

- E é o quê?

Encerrei a conversa e fiz pão de queijo.

Algumas poucas horas depois, Artur jogava videogame com o som alto, mas percebeu que eu já providenciava o almoço. Via delivery, porque sou uma negação na cozinha.

Ouvi seu grito vindo do quarto:

- Papai, compra um bife de carne?

- Tá bom. Com feijão e batata?

- Um bife de carne!

- Já entendi, filho. Quero saber os acompanhamentos. Batata frita e arroz também?

Silêncio.

Ele veio na sala, onde eu estava teclando no app de entrega de comida, e, cenho franzido, explicou calmamente.

- Papai, eu estou pedindo um gift card. É um crédito para jogar no videogame.

- Ah, é um gift card.

Por alguns momentos, esqueci pandemia, desigualdade social, protestos e ameaças totalitárias.

E fiquei rindo sozinho.

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