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Editorial Licença para matar

Publicado em: 02/06/2020 03:00 Atualizado em: 02/06/2020 05:24

A vida imita a literatura. Em 1953, o escritor inglês Ian Fleming criou o agente secreto 007. A serviço de Sua Majestade, o perito em artes marciais, cercado de charme, elegância e belas mulheres, combatia o mal pelo mundo. O 00 que ostentava dava-lhe licença para matar. Levado para o cinema, o personagem ganhou notoriedade nos cinco continentes.

Cena que viralizou na internet há uma semana lembra a obra de Fleming. Trata-se do cruel assassinato de George Floyd pelo agente Derek Chauvin. Com a conivência de três colegas fardados, ele sufoca, com a pressão do joelho sobre o pescoço, o homem algemado que gemia a frase “não posso respirar”. A tortura durou nove minutos. Floyd morreu pouco depois. Era negro.

A resposta veio em manifestações antirracistas formadas por brancos e negros que tomam as ruas de Minneapolis, palco do homicídio, e se espalham por 75 cidades do país – 25 delas declararam toque de recolher e 15 estados recorreram à Guarda Nacional. Cartazes e faixas exibem os dizeres “Vidas negras importam”, “Não posso respirar”, “Sem justiça não há paz”.

De Norte a Sul, de Leste a Oeste, multidões protestam contra a violência policial – algumas pacíficas, outras marcadas por confrontos, saques e incêndio de carros e prédios. Em Washington, diante da Casa Branca, os embates obrigaram o presidente Donald Trump a refugiar-se em bunker.

O homicídio de Floyd foi a gota d’água no mar de tensões raciais que se acumulam no país. É conhecida a violência com que policiais abordam negros, considerados suspeitos em razão da cor da pele. Protegidos pela imunidade qualificada, eles têm licença para matar.

Sistematizada em decisões da Suprema Corte, a doutrina quase impossibilita a condenação judicial de policiais envolvidos em atos de abuso e barbárie. Somam-se ao preconceito os efeitos da Covid-19, que, além de vidas, ceifou postos de trabalho: 40 milhões de americanos estão desempregados, a maioria afrodescendente ou de origem latina.

O clamor dos manifestantes é um grito de basta. Basta ao racismo estrutural que, nas palavras do prefeito de Nova York, é “veneno que permeia a vida de negros todos os dias”. O recado dos protestos é claro. Não se aceita a brutalidade física e simbólica representada pela morte de Floyd. Matar imobilizados não é normal. Não pode ser normal -- nem na ficção.

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