Diario de Pernambuco
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Gabriel, o carrinho e o conto

Vladimir Souza Carvalho
Magistrado

Publicado em: 06/06/2020 03:00 Atualizado em: 06/06/2020 05:42

Gabriel, no seu carrinho de mão, ficava na calçada da casa de Helena Lobo, na Praça da Santa Cruz. O primeiro estudante, que passasse, era convocado para empurrá-lo até o ginásio. A maratona não cansava no terreno plano. O problema surgia no território do ginásio, na subida, pelo lado esquerdo, até a sala dos professores. O peso dos dois, Gabriel, bem rechonchudo, e do carrinho, que não era movido a motor, predominava, provocando cansaço em que tinha a honra, para não dizer desprazer, de conduzi-lo até o ponto desejado. Ufa!

A minha mania de chegar cedo ao ginásio me prejudicava. Era o escolhido. Desjejum leve na barriga, não podia rejeitar a convocação, e lá ia colocando as tripas para fora, até que resolvi mudar de direção, evitando a Praça da Santa Cruz, a fim de me livrar da tarefa. Passei a me utilizar da futura Av. Ivo Carvalho, até a Maternidade São José. De lá, a esquerda, Rua Grumete Alcides Cavalcante, e, dali, uma reta até o ginásio.

Acontecia que, à época, início da década de sessenta, a rua não era calçada, nem o lado direito, onde, muito mais tarde, se plantaria a sede dos Correios, da Associação Atlética de Itabaiana, e outros imóveis, e o outro lado não se apresentava com calçada. Nos dias chuvosos, a água cavava buracos e a lama nascia e dali fazia morada. A área, onde podíamos passar, nem sempre se revelava sólida, se tornando uma maratona de pular aqui e ali, para não sujar o sapato. Armou-se, assim, o desagradável dilema. Em um caminho, empurrar o carrinho de Gabriel. No outro, a lama de uma artéria nova, em quase todo o itinerário, ainda despojada de calçamento.

Na terceira série, ganhei um concurso de contos promovido pelo Grêmio. Fiz até capa, com gravura. Texto horrível. Gabriel soltou a língua, me acusando, nos corredores, de ter copiado de alguma revista. Não me irritei, nem elaborei defesa. Recebi o prêmio bem feliz, pela importância recebida, que me deixou momentaneamente rico. Anos depois, vislumbrei, apenas, naqueles idos, ausência de leitura do mestre. De onde ia copiar se nenhuma revista publicaria uma desgraça daquela?! Tudo era fruto da realidade de então de constante nevoeiro, guiados os alunos por pigmeus que gaguejavam e nunca tinham visto gigantes mastigando pipoca.

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