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A Santa Inquisição e a comunicação via redes sociais

Alexandre Rands Barros
Economista

Publicado em: 06/06/2020 03:00 Atualizado em: 06/06/2020 05:38

Há consenso que o período da Santa Inquisição representou momento obscuro e retrógrado da humanidade. Ela decorreu de uma ruptura na geração e difusão de ideias à época. Enquanto nos meios dedicados ao conhecimento, o pensamento escolástico dominava, nos meios práticos de uma população que migrava de uma organização em aldeias para uma estrutura feudal, a elucubração a partir de observação da realidade, junto com ideias fantasiosas que facilitavam a compreensão, dominavam a construção das ideias. As formações sociais europeias da época conseguiam manter a hegemonia das ideias escolásticas sobre as mundanas, recorrendo às autoridades religiosas. Mesmo que a maioria da população não compreendesse a lógica contida nas ideias escolásticas, suas conclusões prevaleciam na construção de uma ética, crenças e normas que regravam a vida de todos. Quando tensões sociais e rupturas com essa ética começaram a aparecer, questionando as estruturas dos poderes moral e político existentes, a Santa Inquisição foi instaurada e difundida na Europa. Ela funcionava como tribunais que serviam para reprimir divergências de ideias e questionamentos de poder. A sua base de julgamento fundia uma ética escolástica com uma forma de construção de ideias a partir do empiricismo popular, frequentemente prevalecendo essa última. Consequentemente, seus julgamentos e “construções de verdades” traziam toda a rudeza e precariedade de pensamentos poucos lapidados. Ou seja, de forma simplificada pode se dizer que a Santa Inquisição foi produto da ruptura da dominação do pensamento sofisticado dos escolásticos com a visão de mundo popular, que era fruto de construções fantasiosas forjadas a partir de um nível baixo de educação da maioria da população. Surgiu uma ética e construção de interpretação da realidade a partir desse nível grotesco de visão de mundo e a Santa Inquisição tornou-se um tribunal que impunha essa visão obscurantista.

O mundo atual trouxe um fenômeno semelhante de ruptura. A sofisticação e complexidade do conhecimento humano, fundado no desenvolvimento científico, tornou-se incompreensível para pessoas comuns que possuem baixo nível de educação. Referindo-me aqui muito à qualidade desta, pois muitos dos que se encontram entre esses “comuns” possuem nível superior, mesmo tendo sido maus alunos ao longo de suas vidas estudantis. Enquanto a mídia formal dominava a construção de visões de mundo, havia muitas discordâncias, mas a compreensão da realidade e a formação ética continuavam dominadas por níveis mínimos de sofisticação lógica. Fantasias e construções intelectuais simplórias eram controladas, pois enfraqueciam os argumentos em debates, que por competição, tendiam a selecionar pessoas intelectualmente com alguma sofisticação para representar posições conflitantes. As redes sociais eliminaram esse processo de seleção. Agora, o nível intelectual e de compreensão do mundo de muitos que falam para grandes plateias é semelhante ao de líderes religiosos que defendem ideias que seriam risíveis até para o clero devotado ao acompanhamento de fiéis analfabetos nas vilas rurais da idade média. Ou seja, a construção da ética social e interpretação da realidade a partir de comunicação nas redes sociais em ambientes de menor sofisticação intelectual têm lógicas semelhantes ao que aconteceu com a formação das ideais que motivaram e dominaram a Santa Inquisição. Vivemos novamente em um mundo dominado pelo obscurantismo, ao menos no Brasil e nos EUA, que inclusive elegeram presidentes líderes dessa visão de mundo. Precisamos urgentemente de regras que coíbam essa dominação do obscurantismo. Restrição de atuação de robôs na internet, legislação de combate a fake news e até eliminação de perfis falsos devem ser algumas das medidas para nos livrar do obscurantismo. Da mesma forma que no Brasil não podem existir empresas sem responsáveis, também é razoável defender que na internet não possam existir perfis em redes sociais que não tenham um responsável identificável por ele.

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