Diario de Pernambuco
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A pandemia e a boa-fé contratual

Frederico Ricardo A. Neves
Magistrado e Professor

Publicado em: 03/06/2020 03:00 Atualizado em: 03/06/2020 06:13

A pandemia do coronavírus é um acontecimento imprevisível e extraordinário, que põe em risco a saúde e a vida das pessoas, a justificar, plenamente, a adoção de medidas excepcionais de isolamento social, para evitar a propagação da doença. Todavia, não obstante as providências implementadas pelas autoridades sanitárias, o que se vê na atualidade é uma crescente disseminação do vírus no país, a alcançar números alarmantes de pessoas infectadas e mortas.

Diante deste cenário desesperador, com as pessoas impossibilitadas de exercer as suas atividades profissionais habituais, muitos negócios jurídicos que foram livre, solene e conscientemente celebrados antes da pandemia, estão deixando de ser executados, por circunstâncias alheias à vontade dos contratantes. Isso, porém, não constitui inadimplemento, pois que, à conveniência de se manter respeitado o princípio da força obrigatória do contrato – pedra angular da segurança do negócio jurídico – contrapõe-se a necessidade imperiosa de impedir que um dos contratantes possa ser levado a situação de extrema injustiça, diante de uma ruptura implacável do equilíbrio substancial das prestações pactuadas.

Os contratos são celebrados com vistas à consecução de certa finalidade, pelo que devem ser executados na sua integralidade, com respeito a boa-fé, pelos figurantes do negócio jurídico. Uma vez cumprido normalmente o que foi convencionado, exaure-se a missão do contrato, por haver produzido os efeitos a que se destinava. Nalguns casos, contudo, os contratos extinguem-se sem que tenham alcançado os objetivos almejados, quer por causas pretéritas, ou até contemporâneas à sua formação, quer em função de ocorrências supervenientes, inesperadas e extraordinárias, que alterem o plano econômico da avença - tornando a prestação excessivamente onerosa - ou mesmo impeçam o cumprimento respectivo.

Isso chama a intervir o instituto da resolução, ou da modificação do contrato, notadamente porque o ato de exigir o cumprimento do que foi ajustado, diante de tais superveniências ambientais não planejadas, contunde, bem se percebe, flagrantemente, com o princípio da boa-fé.

Assim, diante das consequências advenientes da Covid-19, nada obsta, antes aconselha, que o intérprete-aplicador da norma, desde que provocado, confrontando-se com situações reveladoras de mudanças anormais das circunstâncias que levaram os interessados a contratar, adote providência afeiçoada à Justiça contratual, resolvendo ou modificando o negócio jurídico, em ordem a restaurar o equilíbrio desfeito, de harmonia com o princípio da boa-fé.

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