Diario de Pernambuco
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Das lembranças, a casa de Tobias

Vladimir Souza Carvalho
Magistrado

Publicado em: 23/05/2020 03:00 Atualizado em: 23/05/2020 09:24

O quadro, na parede, voltado para a porta da rua, aos meus olhos, imenso. Nossa Senhora da Conceição, bem colorida, cercada de anjos. No meio dos músicos, só uma cena gravei: a água extraída de alguns instrumentos. O músico puxava uma peça e direcionando-a ao chão, um líquido jorrava. Depois, quando passei a tocar também, descobri que o líquido era cuspe acumulado, fruto do sopro, típico e específico dos instrumentos de bocal, tudo na letra t: tuba, trompa, trompete e trombone. Ainda hoje, sessenta e seis ou sessenta e sete depois, estou vendo a mesma cena, que me ficou pregada na mente, no jogar o cuspe fora. O rosto dos músicos, o som dos dobrados tocados – a sede, então, da banda, era bem próxima de minha casa -, nada ficou. Só o jogar o cuspe fora quando os músicos descansavam do dobrado tocado.   

São imagens esparsas e incompletas, iguais a tantas outras, um flash, sem início, meio e fim, que a memória manteve intactas, eu com três anos, não mais do que isso, sem me lembrar como atravessava a rua para chegar até a sede da banda, a vinte metros de minha casa, num tempo em que a energia elétrica faltava, acho, à meia-noite. Com quem ia, com quem voltava, não guardo nenhuma lembrança, sobretudo porque era o caçula da casa, mamãe numa vigilância danada, atenta a tudo que no seu castelo ocorria e sua pequena ninhada fazia.  

Depois, ah, depois, a banda desapareceu, e dela não me lembrei, nem senti falta, uma família foi morar na casa, uma mãe solteira, quatro filhos, todos de pais diferentes, que se tornaram nossos amigos, enquanto por lá moraram, o que nos permitiu ingressar na casa e adentrar no quintal, onde um jenipapeiro imenso se assentava, a dominar uma parte do quintal com suas folhas, a parir jenipapos, incansavelmente. Se outra fruteira existia, peço escusas por não me lembrar. Não é possível puxar muito de minha cabeça, quando me refiro a fatos ocorridos nos primeiros anos da década de cinquenta. O que não me lembro é porque não consegui guardar. Natural.

Foi nessa casa que Tobias Barreto, década de cinquenta do século dezenove, morou e ensinou latim a meninos, que nem sabiam português, entre os quais, um trisavô paterno. A casa foi derrubada. Contudo, foto da banda, no começo do século 20, a mantém em pé. Para sempre.

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