Diario de Pernambuco
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A verdade, a política e a Medicina

José Luiz Delgado
Professor de Direito da UFPE

Publicado em: 18/05/2020 03:00 Atualizado em: 18/05/2020 07:22

O homem foi feito para a verdade. A verdade é o ar que o espírito do homem respira. Ele não vive senão por ela e para ela. Sem ela,  não pode sequer pensar, não pode se comunicar; a rigor, não é homem. Ela é o supremo valor, do qual derivam todos os outros.

Embora sempre importante e fundamental, a verdade não é, porém, aquilo a ser procurado em primeiro lugar em todo e qualquer setor da diversificada atividade do homem. Ela é objeto propriamente da ciência, da filosofia, da história. Mas não se dirá que é a verdade aquilo que, por exemplo, a política busca. O político está atrás de um resultado, que é o poder e a implementação de seu programa de governo. A dimensão da verdade não é estranha ao político – porque jamais será estranha ao homem – mas aparece de forma secundária, ou enviesada, ou transversal. Para conseguir o poder, e realizar o seu programa,  ele pode acentuar mais certos aspectos da realidade e omitir outros, o que sempre seria inadmissível numa investigação da verdade. Ele não está engajado numa obra de biógrafo ou de historiador, ou de cientista da política, mas na política propriamente dita, ou seja, na luta pelo poder, para implementar seus ideais, sua visão das coisas, sua concepção da sociedade. A verdade é sempre o objeto de um VER: trata-se apenas de ver, de querer saber, como as coisas são ou foram, sem interferir nelas. Na política, o que há é um FAZER: conseguir o poder, governar, implantar suas propostas. Na ciência, procura-se ver (ou conhecer) o mundo; na política, o que se procura é transformar, mudar o mundo.  

De modo semelhante, a medicina. A verdade, também aqui,  ocupa lugar importantíssimo (é o objeto de todas as ciências médicas nas quais a medicina se baseia ou das quais parte), mas não é aquilo que o médico (e seu paciente) procura em primeiro lugar. O que desejam eles, paciente e médico, é um fazer: é a cura. E não raras vezes a cura é conseguida sem a verdade, isto é, sem que o médico tenha descoberto a identidade completa do mal de que precisamente o doente padecia. Nenhum doente procura um médico para que este tão somente descubra o mal que o aflige. Procura-o é para que o médico o cure. Se curar tendo encontrado a identidade exata da doença, ótimo. Se o curar, porém, sem saber exatamente de que foi, não importa: interessa-lhe (ao médico, e muito mais ainda ao paciente) é a cura. Depois as ciências médicas que se debrucem sobre aquele caso clínico para descobrir claramente a natureza da moléstia: será tarefa  de outro tipo de especialista, a saber, dos cientistas das diferentes ciências médicas,  não é tarefa da medicina propriamente dita. O empenho dos médicos é curar, e não poucas vezes não há tempo suficiente para aguardar o resultado das investigações científicas que estabeleceriam, fora de qualquer dúvida, a natureza da moléstia.

É nessa natureza peculiar da medicina, arte, muito mais do que propriamente ciência; é na relação importante, mas não essencial e direta, que a medicina tem com a verdade e no seu objetivo real (menos a verdade do que a cura)  – que penso quando vejo administradores reivindicarem tanto a força do “ciência, ciência, ciência”, para justificar, no drama geral do coronavírus, sua falta de iniciativa e de decisões médicas. São cientistas ou são médicos? O que querem é VER, identificar as evidências, ou é FAZER, salvar vidas?

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