Diario de Pernambuco
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Mudou o carnaval, ou mudei eu...

Leonardo Dantas Silva
Escritor e historiador

Publicado em: 05/03/2020 03:00 Atualizado em: 05/03/2020 08:57

O verdadeiro carnaval do Recife é constituído por grupos de caboclinhos, nações africanas, troças, ursos, clubes de frevo, maracatus de orquestra, blocos carnavalescos, tribos de índios, bois, reisados, turmas de mascarados, Freviocas que congregam multidões de foliões a tomar conta de becos, ruas e avenidas, enchendo de cores e alegria esta nossa cidade.

Batidas sincopadas dos bombos dos maracatus, estalidos das preácas dos caboclinhos, notas agudas e dissonantes das fanfarras de frevo, sons rurais de acordeões de La Ursas, batuques de escolas de samba, cômicas toadas de um Mateus do bumba meu boi, todo lirismo dos versos das marchas de bloco, o fervilhar das multidões cantando velhos sucessos de Capiba, Luiz Bandeira, José Menezes e Nelson Ferreira, entoados com euforia no rastro das Freviocas levando de roldão a tristeza e a melancolia, numa parafernália de sons que toma conta da cidade do Recife quando chega o carnaval.

Porém, o que se viu nas ruas do Recife, desde que se implantou o Carnaval Multicultural em 2001, é que se trata de um verdadeiro assalto de grupos artísticos de outras plagas impondo a todos nós ritmos e manifestações outras por vezes atentatórias às nossas mais caras tradições culturais.

Gente estranha que aqui chega, atraída pelos elevados contratos, e toma o espaço das por vezes centenárias troças e clubes de frevo, com suas orquestras de metais; de centenárias Nações Africanas, responsáveis pelos nossos tradicionais maracatus, alguns deles dos tempos distantes de Pedro I ...

Todo esse menosprezo com a nossa cultura e toda essa agressão para com os verdadeiros titulares das nossas mais caras tradições, tão somente para dar espaço e visibilidade a grupos de outras plagas, alheios ao nosso carnaval, como Paralamas do Sucesso, Elza Soares, Mariene Castro, Priscila Senna, Skank, Pitty, Zélia Duncan, Fafá de Belém, dentre muitos outros muitos intérpretes.

No entorno dos grandes palcos e nas ruas, ninguém ali está para “fazer o passo” (coreografia própria do frevo pernambucano), ou para acompanhar o cortejo do seu maracatu e mesmo do caboclinho, sem falar na “onda” que se seguem aos clubes de frevo ou às multidões frevolentas dos nossos dos blocos carnavalescos.

Não, o folião do Recife encontra-se imprensado como sardinha, preocupado em conseguir, na ponta dos pés, um ângulo de melhor visão para os seus olhos curiosos.

O carnaval do Recife, nas suas edições programadas para os palcos do Marco Zero, da Praça do Arsenal, da Praça da Independência, da Rua da Moeda, do Cais da Alfândega e mesmo para os polos carnavalescos do subúrbio, transformou-se em apresentações passageiras, com hora para acabar, embaladas por ritmos de meio-de-ano mais do que requentados.

O verdadeiro carnaval do Recife, que estávamos acostumados a participar, é coisa do passado....

Como bem classificou o jornalista José Teles, tudo se transformou em um grande festival de verão.

Poderíamos sintetizar as nossas preocupações com o pensamento de Gilberto Freyre, ao tecer suas críticas à organização do carnaval do Recife em 1966:

Um carnaval do Recife em que comecem a predominar escolas de samba ou qualquer outro exotismo dirigido, já não é um carnaval recifense ou pernambucano: é um inexpressível, postiço e até caricaturesco carnaval subcarioca ou subisso ou subaquilo. De modo que a inesperada predominância, no carnaval deste ano, do samba subcarioca, deve alarmar, inquietar e despertar o brio de todo bom pernambucano. (Diario de Pernambuco, 27 fevereiro.1966)

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