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O Recife sem os recifenses

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
twitter: @RandsMauricio

Publicado em: 03/02/2020 03:00 Atualizado em: 03/02/2020 10:13

Recife lotado. Abarrotado. Engarrafado. Colapsado. O professor Natanael, certa feita, não se conteve ao exaltar quão agradável é o Recife nos feriadões.  Sem os recifenses. Sem filas, ruas vazias. Convite a nele passear. Que verdadeiramente só conseguimos admirar a beleza de uma cidade quando andamos a pé. Quando podemos enquadrar cada traço que lhe confere a personalidade. Mais ainda quando se trata de uma anciã de 483 anos. Plena de personalidade e história, marcada no traço arquitetônico e urbanístico que a faz especial entre as capitais brasileiras. Mas como caminhar, se as calçadas estão destroçadas? E se o menor trajeto nos faz suar como em uma partida de futebol? Ou se arriscamos perder o celular ou a carteira?

Podemos mudar esse jogo. Depende de todos e de cada um de nós. Não dá pra esperar que tudo venha do poder público. Nem se deve culpá-lo por tudo. No trânsito, comportar-se com civilidade deveria ser a regra interiorizada por quem pretenda ser cidadão de verdade. Respeitar regras mínimas como a de não furar o sinal. Ou a de sempre conferir prioridade ao pedestre. Ou a de não buzinar por qualquer banal motivo. Ou a de não trafegar com lentidão na faixa esquerda. Sim, porque atrapalha o trânsito o motorista que dirige como se estivesse numa corrida de fórmula um. Mas não atrapalha menos aquele que dirige bem devagarinho na faixa que foi concebida para que o trânsito possa fluir. Ou de não fazer fila dupla ao levar o filho à escola. Outro dia um paulista aqui aportado nos advertiu. “Vocês pensam que ligar o pisca-pisca lhes dá o direito de parar o carro onde bem entendam”.

Tudo isso não deve nos impedir de enxergar a grande culpa do poder público. Claro que a péssima qualidade dos serviços públicos é agravante. Assim como a falta de planejamento e de boa gestão do trânsito. Irritam também as regras mal concebidas. Os recifenses hoje se sentem espoliados pela indústria das multas. Os limites de velocidade são estabelecidos exagerada e arbitrariamente. Aqui o limite é de 40 km, ali de 60, acolá de 30. A menor distração e tem um pardal ou lombada para nos impingir uma multa. Ganhando com esses abusos devem estar as empresas que os instalam. Sócias que se tornaram do estado coletor. Uma nova derrama. Por muito menos, os mineiros fizeram a Inconfidência contra os coletores-expropriadores do rei. E os pernambucanos, a Revolução de 1817. Esta, sim, uma revolução.

Quando fixa regras tão arbitrárias, a prefeitura na verdade está tirando com uma mão o que pôs com a outra. Ao construir um binário, um viaduto, um túnel ou uma nova avenida, busca conferir velocidade à nossa mobilidade urbana. Mas, com a outra mão, não hesita em cancelar o benefício ao impor limites exagerados à velocidade. O resultado é que o Recife se transforma numa cidade parada. Ir de um bairro a outro pode nos custar uma hora ou mais. Perdemos tempo precioso que poderíamos consagrar ao trabalho, ao estudo, ao lazer e ao convívio familiar.

A solução óbvia é o transporte público decente. Algo que, para nós, não passa de quimera. Superlotados, nossos ônibus não têm climatização. Nem oferecem trajetos que nos permitam abdicar do carro particular. Dia desses, visitei duas cidades que têm mais ou menos a mesma população do Recife. Praga e Budapeste. As linhas de ônibus, metrô e VLT permitem que nos desloquemos para qualquer ponto da cidade combinando várias linhas. Com o mesmo bilhete, vendido com base em tempos de validade. O resultado é que os engarrafamentos se tornam raros.

Quando podemos sentir um gostinho do que seria um Recife com mobilidade, é quando os recifenses estão fora das ruas. No carnaval, na praia, ou no interior. Aí os que ficam podem andar, dirigir e descobrir uma cidade que fica muito mais bela porque nua.

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