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A liberdade e seus limites

José Luiz Delgado
Professor de Direito da UFPE

Publicado em: 13/02/2020 03:00 Atualizado em: 13/02/2020 08:50

O Direito é sempre um difícil contrapesar de valores. Por isso mesmo seu símbolo típico é uma balança: ele avalia as razões de um lado e de outro, os valores  em jogo, e os compara, e reconhece, num lado, um peso maior, uma maior densidade, do que no outro. A liberdade de expressão é evidentemente formidável e imensa conquista civilizacional. liberdade de pensamento, de investigação, de transmissão do pensamento, de comunicação. É um mundo obviamente melhor e mais humano este em que cada um pode procurar a verdade por conta própria, sem que ela lhe seja imposta por nenhuma autoridade, seja civil seja religiosa. E em que pode transmitir o resultado de sua procura, pode exprimir livremente o seu pensamento. Não significa isso, porém, que a liberdade de expressão seja valor absolutamente supremo e não admita nenhuma modulação, nenhuma contraposição, nenhum condicionamento. De fato, valor algum é absoluto (nem a vida) e se impõe em qualquer situação, sem atenuações, sem a  consideração de qualquer circunstância (basta pensar na legítima defesa).

Não há liberdade de expressão, por exemplo, para disseminar preconceitos racistas ou para fazer apologia do nazismo.  Nem serve ela, outro exemplo, para acobertar ofensas à honra e à imagem das pessoas. Entre esses valores em jogo – de um lado o direito fundamental à liberdade de expressão, e de outro, os direitos não menos fundamentais à integridade moral e à igualdade – o Direito, por mais que  tenha a liberdade de expressão como conquista exponencial da dignidade humana, dará prevalência aos segundos, nem aquela conquista civilizacional justificando agressões à honra alheia ou discriminações irrazoadas.

Se a honra pessoal é assim protegida, como não o seria também a honra de cada religião, os símbolos sagrados, os valores máximos de cada crença? Por que imaginar que a liberdade de expressão é máxima suficiente para justificar que se vilipendie a figura de Jesus Cristo, ou de Maomé, ou qualquer outro ícone religioso de diferente religião? Por que, em nome da liberdade de expressão, se poderia aviltar, achincalhar, debochar da figura de Jesus? O humor será tabu sagrado capaz de acobertar tudo, quaisquer injúrias, quaisquer deboches? É razoável rir ofendendo os outros?

Liberdade de pensamento e de crítica é uma coisa, e deve sempre ser assegurada e protegida. Liberdade para ofender e para achincalhar a religião alheia é a mesma coisa? Estará incluída e abrigada  na primeira? Ou, ao contrário, a civilização deve reconhecer que essas duas são realidades muito distintas e incomunicáveis?

Num despacho sumamente (mas não surpreendentemente) medíocre, o Ministro Toffoli argumentou que não seria a canalhice de um filme que iria abalar a fé cristã secular. É óbvio. Nada abalará a fé cristã secular. A tal Porta dos Fundos não conseguirá o que nem as portas do inferno conseguirão. Sobre a Pedra da Igreja de Cristo, as portas do inferno (quanto mais as portas dos fundos...)  não prevalecerão. O que não significa que essas ofensas vis possam ser toleradas. Qualquer ideia de civilização as repugna. Qualquer ideia de respeito aos outros as condena. Qualquer boa ideia do que deva ser o Direito rejeita essas deformações de uma liberdade de expressão tornada (somente para alguns casos) dogma incontrastável.

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