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A festa do Poço: procissão, foguetes, missa e memória

Luzilá Gonçalves Ferreira
Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 04/02/2020 03:00 Atualizado em: 04/02/2020 15:10

A procissão sai da capela, vai à Matriz, na Praça da Casa Forte, e volta para a celebração no largo do Poço, como todos os anos, há muito mais de um século. Os fiéis andam lentamente, alguns carregam velas acesas, protegidas do vento pelo plástico das garrafas pet, uma bela ideia de reciclagem. Cantam suavemente. Em seu andor, cercada de lírios e rosas amarelas, Nossa Senhora da Saúde terá, este ano, uma missa campal. Ao lado do cortejo, alguns rapazes, filhos ou netos de antigos moradores do Poço, aguardam os momentos de soltar foguetes: à saída da Matriz: quando se atinge a Estrada Real do Poço; na pracinha onde morou o poeta Maciel Monteiro (“Quem pode ver-te sem querer amar-te, Quem pode amar-te sem morrer de amores”); no cruzamento com a Rua Luiz Guimarães, que também foi poeta, diante do belo casarão onde todas as tardes a gente via o historiador e grande amante do bairro e do Recife, Benicio Dias, com um livro na mão.

A esta altura, uma pequena discussão, um rapaz vem se queixar, e com razão: é preciso pensar nas pessoas idosas, nos cães que suportam mal os estrondos dos foguetes, cada ano mais fortes. A moça que está organizando o cortejo, justifica: - Mas é pra celebrar a santa! Então, por uns momentos, só o canto dos fiéis ocupa os ares, até que se chegue à pracinha do Poço, onde a multidão aguarda a missa. Ao lado da casa da abolicionista dona Olegarinha, mãe do poeta Olegário Mariano, que cantou o velho lampião do Poço, a bondade, a religiosidade, a atividade política da mãe, escondendo escravos, vendendo suas joias para comprar cartas de alforria. E o solar familiar, onde José Mariano organizava sessões de reação contra a escravidão. O velho solar da família não mais existe, mas uma estátua de escravo lembra que aquele é hoje um lugar sagrado, onde poesia, religião e memória, se unem para recordar aquela “página infeliz de nossa História” ainda não totalmente abolida, para nossa tristeza e vergonha.

A cerimônia da missa, o canto dos fiéis, o belo sermão do jovem padre, compensaram a ausência do querido Padre Edvaldo que durante anos foi, conselheiro, ajudador, mas um amigo exigente para denunciar mazelas e lutar ao lado de suas ovelhas. A Festa de Nossa Senhora das Saúde, encerrada neste início de fevereiro, fez lembrar, igualmente os tempos nos quais os recifenses citadinos, fugindo do calor do Recife, alugavam casas em Apipucos, no Monteiro, e vinham a pé pela estrada ao lado do açude, para agradecer bênçãos recebidas, fazer promessas, e celebrar a vida. Belos tempos que os festejos das últimas semanas tornam presentes.

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