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Um peru de Natal

Luzilá Gonçalves Ferreira
Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 24/12/2019 03:00 Atualizado em: 24/12/2019 08:29

Antigamente, comer peru no Natal não era coisa assim comum, pelo menos entre famílias de classe média. Se o leitor desta coluna é, como eu, grande admirador de Mário de Andrade, pode testemunhar essa verdade. Basta ler o delicioso (em todos os sentidos) conto que o autor de Macunaíma intitulou O peru de Natal, escrito em agosto de 1938, publicado em Contos Novos, editado em 1972 pelo MEC como edição comemorativa do aniversário da Semana de Arte Moderna. Uma obra prima de conto, com narrador em primeira pessoa que a gente delega imediatamente ao próprio Mário. Trata-se do “primeiro Natal de família” depois da morte do pai, cinco meses antes. Um acontecimento decisivo para a felicidade da família, avisa o escritor, família feliz, comum, de “gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas, nem graves dificuldades econômicas”. Observação: em face dos últimos acontecimentos, como diria Drummond, essa família feliz é ainda hoje algo assim comum, nesse Brasil brasileiro cantado por Ary Barroso? Passons, como dizem os franceses. Desde as primeiras linhas, Mário informa sobre o pai. Ser desprovido de lirismo, “acolchoado no medíocre” (que ótima expressão), sem  gosto por algum conforto material: “Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro sangue dos desmanchas prazeres”. Um morto lembrado pelo costume em cada gesto da família: se seu pai estivesse aqui...Comer peru era coisa impensável, comida de celebração de aniversário, prato de festa para os parentes que devoravam tudo e ainda levavam embrulhinhos pra casa, enquanto a mãe e as irmãs comiam os restos, exaustas de trabalhar, E  o narrador decide o corte na memória do ausente: comer peru no Natal. E que não se convidasse ninguém um peru só eles pra a pequena família.

E se faz o peru, e a mãe, econômica por costume, nem acredita que aquelas primeiras enormes fatias eram para ela para as irmãs, todas acostumadas à antiga “quase pobreza sem razão”. À medida que comem, lembram o pai, mas na luta entre a figura paterna e o peru, é este o vencedor, acompanhado por duas garrafas de cerveja.. E Mário resume “Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um, o que a quotidianidade abafara por completo, Deus me perdoe, mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus.”

Cada ano, por esta época, diante das enormes aves já temperadas nos supermercados, (com que ração de agrotóxicos serão alimentadas?), lembro Mário de Andrade. Será que as pessoas aflitas por cumprir ritos, lembrarão como o poeta, que “peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido”?

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