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Todos os papas

José Luiz Delgado
Professor de Direito da UFPE
jslzdelgado@gmail.com

Publicado em: 25/12/2019 09:00 Atualizado em:

O excelente filme do brasileiro Fernando Meirelles, Dois Papas, descrevendo encontro que nunca existiu, é evidentemente uma peça de ficção. Mas muito plausível ficção.

Plausível é, antes de tudo, o conteúdo do diálogo. Mas também até a própria possibilidade dele, se Bento tivesse tido a premonição de que Bergoglio poderia ser seu sucessor. De fato, isso não aconteceu. Bergoglio pode ter pensado em se aposentar do arcebispado de Buenos Aires antes da hora; mas nem formalizou isso, nem foi conversar com o papa a respeito. Por outro lado, Bento jamais pensou em Bergoglio como um dos possíveis sucessores – conforme declarou expressamente numa imensa entrevista transformada em livro. Não suspeitando do nome do sucessor, não pode ter havido, portanto, empenho seu para convencer o argentino a aceitar o papado.

Mas, se não houve aquele encontro em torno do qual gira o filme, várias conversações entre os dois pontífices aconteceram de fato, depois da eleição. E é excelente que tenham ocorrido essas conversações, e ainda ocorram  – raro privilégio histórico, concedido ao nosso tempo, esse de ver dois papas juntos, em harmonia, sem conflito, sem que um esteja disputando e renegando o outro, acusando-o de “antipapa”.

Porque entre os papas todos, não só entre Bento e Francisco, mas também entre Paulo e João Paulo, entre Pio e João, entre todos os papas o que há é continuidade, harmonia, unidade. Sendo individualidades distintas, sempre existirão, claro, diferenças de estilo, de temperamento, de forma, de modos de ser e de se comunicar. Mas o essencial permanece o mesmo, imutável, firme, sólido, a rocha sobre a qual Ele edificou a Sua igreja. Nenhum papa – nenhum – abandonou o dogma, negou a fé, traiu o tesouro de que tem a guarda.

Os diálogos transpostos agora no filme são conversações que qualquer papa poderia ter com o sucessor ou o antecessor, são tocantes debates sobre os caminhos da Igreja, a cujo respeito podem ter visões um pouco diferentes, acentos postos nisso ou naquilo, mas dentro do mesmo chão comum, o mesmo ideal, a mesma base. A tal ponto que as divergências iniciais (Bento teria chegado a confessar não concordar em nada com o que o outro dizia) acabam se diluindo num clima não só de simples confraternização, mas de verdadeira e completa compreensão recíproca, cada um entendendo as razões do outro. Porque reconhecem que o objetivo é comum, cumprir o mandado do Senhor, e que o espírito que os move é o mesmo, a docilidade e a fidelidade a Cristo.

Por isto, o filme acaba sendo sedutora alegoria não sobre dois papas, mas sobre todos os papas. A Igreja avança com os dois pés, um passo à direita e outro, à esquerda, e é nessa alternância, nessa oscilação, que ela vai cumprindo, na história, o mandado do Senhor, de tal modo que, como há muito se diz, e o filme registra, cada papa corrige o papa anterior. Aos católicos o que cabe é não opor um papa a outro, e querer tomar partido. Nossa fidelidade deve ser ao Papa, qualquer que seja o nome que eventualmente tenha. Como disse João XXIII num encontro com os judeus: “eu sou José, vosso irmão”. E, magnificamente, Paulo VI, ao se apresentar aos protestantes, numa reunião de um Conselho Ecumênico: “meu nome é Pedro”.

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