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O tempo das cerejas

Luzilá Gonçalves Ferreira
Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 03/12/2019 03:00 Atualizado em: 03/12/2019 08:55

No começo do século 20, um filósofo francês estudou o modo como o tempo passado de repente se torna presente,  alojado nas coisas, voltando num gosto de fruta, de comida, num perfume, numa melodia qualquer, que pareciam esquecidos. Adormecidos em algum lugar de nossa memória. Pois neste fim de semana, surgiram em supermercados recifenses, as primeiras cerejas da época, vindas do Chile, da Argentina, imagino. E de súbito me chegam lembranças, gustativas, visuais e até de cunho cultural. Que o leitor me perdoe relatá-las, mas penso que muitos de nós experimentam atualmente, por exemplo, reviver gosto de infância nos cajus que estão surgindo (vindos do Piauí, me explica o vendedor, os cajueiros estão desaparecendo de nossas praias) e acrescento, igualmente, as mangabeiras sobre cuja sombra passaram luas, segundo Joaquim Cardozo no poema, dos mais belos que já se escreveu a respeito, Imagens do Nordeste. Mas deixem-me voltar às cerejas. Na bandejinha que me ofertaram ontem, estavam as frutinhas vermelhas que meu filho e eu comprávamos na esquina de Talcahuano, em Buenos Aires, e íamos comendo, mesmo sem lavar. Já perto de casa, o kilo havia desparecido e voltávamos de novo a fazer nova compra. Outra lembrança: uma escala de algumas horas, com Lucile minha filha, em Lisboa, e a alegria de encontrar, ali mesmo  perto do Cais Sodré, os tabuleiros iluminados de vermelho, quase roxo, as cerejas enormes, dulcíssimas. Uma terceira lembrança: no final do culto, em Aix en Provence, o pastor Roland de Pury (que fora preso pela Gestapo por esconder judeus e lhes fornecer certificados falsos, de batismo) nos anuncia: “O Conde de... convida a comunidade para ir agora colher cerejas em sua propriedade.” Fomos, e uma alameda de cerejeiras carregadas, levava até o castelo. Pequenas árvores, que permitiam a meu filho de três anos colher aas frutinhas, correndo de árvore em árvore, aos gritos de alegria.  Mas a melhor evocação de cerejas é a canção Le temps des cerises, na voz de Yves Montand. Escrita por J.B.Clément, lembrando a Comuna de Paris, quando um governo proletário existiu por uns 20 meses ( alguma semelhança com nossa revolução de 1817?) protestando contra os impostos que o pais exigia pra pagar dividas da guerra perdida com a Prússia, e advogava, entre outras coisas igualdade de salários entre homens e mulheres, escola pública e gratuita, fim do serviço militar obrigatório. Clément, compositor e cantor popular, foi uma das vitimas da repressão á Comuna e cantava o tempo em que as cerejas voltariam, isto é, o tempo da paz, uma primavera onde todos seriam felizes, os corações em festa, e as moças colocariam nas orelhas  raminhos de cereja como brincos. O túmulo de J. B. Clement  se encontra no cemitério do Père Lachaise em Paris, ao lado de outros operários executados no mesmo dia. Sobre o túmulo sempre há um cachinho de cerejas. Artificiais o ano inteiro. Mas no tempo das cerejas, esses cachinhos são sempre substituídos por cerejas verdadeiras,  ninguém sabe por quem. Uma homenagem comovente.

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