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O Supremo contra o país - I

José Luiz Delgado
Professor de Direito da UFPE

Publicado em: 03/12/2019 03:00 Atualizado em: 03/12/2019 08:55

Não se pode dizer que a decisão do Supremo a respeito da presunção de inocência tenha sido jurídicamente errada, incorreta, abusiva. Era uma interpretação razoável, até literal, dados os termos da Constituição. Não era, porém, a única interpretação possível. A interpretação oposta também não seria irrazoável nem errada nem absurda, não podendo ser tida como contrária à Constituição. E como havia esse outro entendimento também razoável, o que se deve dizer é que a decisão tomada, modificando o entendimento tradicional (sem nenhuma razão ou fato novo para isso), foi péssima, foi a pior possível. Frustrou o país e colocou o Supremo contra o Brasil.
 
Que o princípio da presunção da inocência não contém, em si mesmo, e por si mesmo, a consequência de que a prisão penal somente se pode dar quando esgotados todos os recursos; que uma coisa não decorre necessariamente da outra, não está incluída na outra– é evidente e resulta inclusive do fato de que a Constituição e a lei admitem formas de prisão (as cautelares) sem que tenha havido trânsito em julgado. O que seria manifesta contradição. Porque, se o sujeito não pode ser preso até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (porque até aí é considerado inocente), então, como pode ser preso cautelarmente, sendo então considerado perigoso sem sentença transitada em julgado? A “presunção de inocência” entendida em termos tão absolutos deve repudiar tanto um juízo quanto o outro: ninguém é culpado e ninguém é “perigoso”, até a sentença transitar em julgado...
 
Resulta também do fato de que, durante bom tempo, a maioria do mesmo Supremo adotou o outro entendimento, e portanto absolutamente não considerou implícita na presunção de inocência a impossibilidade de início da execução penal antes do trânsito em julgado. E resulta ainda do fato de que a imensa maioria dos países ditos os mais civilizados do mundo não exige, para a prisão, o esgotamento de todos os recursos. E é meio ridículo imaginar o Brasil dando lições de democracia, liberalismo, direitos humanos, aos Estados Unidos, à Inglaterra, à Alemanha, à França, etc etc.
 
Todo o problema é saber em que consiste a garantia – magnífica, grande avanço civilizacional – da “presunção de inocência”. E há que reconhecer que, neste conceito, não consta a nota indispensável do início da execução penal somente após o trânsito em julgado. Seu conteúdo essencial está é no campo da prova, não no da execução da condenação. É a ideia de que a pessoa acusada é, em princípio, inocente, não sendo a ela que cabe provar a inocência, mas ao acusador provar a culpa.
 
E é óbvio que, em advindo uma condenação formal depois de processo corretamente conduzido, com contraditório e ampla defesa (condenação pelo Poder Judiciário, o Estado julgador), passa a haver é uma presunção de culpa. Razoável, consistente, fundada presunção de culpa, embora não absoluta (pode vir a ser desfeita).
 
E isso já na sentença de primeiro grau. Quanto mais no segundo grau. Se, neste, o tribunal confirma a condenação, a presunção de culpa (ainda não absoluta) mais se robustece. Não se trata de imputação leviana de um inimigo qualquer, mas de decisão formal de terceiro imparcial, o juiz, em nome do Estado. A presunção, agora, é de culpa – embora persista o princípio da presunção de inocência (apenas quanto às provas: ainda é à acusação que cabe provar a culpa) – e pode ser iniciada, sim, a execução da pena.

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