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O dia em que vi Brennand

Gabriel Trigueiro
Jornalista

Publicado em: 23/12/2019 03:00 Atualizado em: 23/12/2019 08:36

Quis o destino que este repórter jamais vivesse a experiência de entrevistar o ceramista, escultor e pintor Francisco Brennand. A morte de um grande artista ou outra personalidade de porte, independentemente da área de atuação, costuma trazer um amargor específico – e um tanto egoísta – a qualquer jornalista que é deixado para trás com uma grande oportunidade perdida e uma irremediável lacuna no currículo.

Mas coube a mim um rápido e definitivo encontro com o ícone na sua Oficina. Numa manhã de 1996, uma excursão da escola na qual eu cursava o segundo ano do ensino médio me levou, junto com cerca de 20 colegas, àquele bunker de sonhos na Várzea. Por pura sorte, fomos “lá em Brennand” e por lá achamos o próprio.

Artistas, naturalmente, passam a vida a criar ou reler personagens. E uma das figuras mais marcantes da obra do autor – para além das divindades gregas de suas esculturas e das adolescentes nuas de suas pinturas – foi a inconfundível imagem que ele consolidou de si mesmo nos últimos anos de vida. A longuíssima barba branca com abertura característica no bigode, os suspensórios, a bengala... O Brennand que ficará na memória da maioria das pessoas era uma figura que parecia ter viajado numa cápsula saída do século 19, tão original e misteriosa quanto sua desafiadora obra.

Essa imagem tardia tem um quê de surpreendente para mim. Naquela manhã de 23 anos atrás, conversei brevemente com um sujeito de 69 anos, barba bem mais econômica que a de hoje e roupas relativamente esportivas. O Brennand que conheci em pessoa era um homem extremamente ágil para sua idade e sobretudo para seu então avantajado porte físico.

Das lembranças que guardo, ficou a evidente satisfação do artista diante da presença de tão jovens admiradores vindos de outro estado (naquela época eu vivia em Natal -RN, onde estudava no Complexo Educacional Henrique Castriciano) para conhecer sua obra imponente, infernal e, acima de tudo, interminável. Já consagradíssimo, o ceramista mantinha total capacidade de se encantar com o encantamento de um bando de garotos de 15 a 17 anos que visitavam seu universo particular.

“O meu sentimento na época foi que Brennand era uma figura isolada, mas não sozinha. Alguém que, pela impossibilidade de viver integralmente no mundo da imaginação, materializou o próprio mundo com suas mãos”, observa o produtor cultural Daniel Campos, hoje residente em Portugal, mas que integrava a turma naquela visita. “Para nós, ainda em fase de crescimento, era como encontrar o Papai Noel na Lapônia ou Hagrid em Hogwarts. Brennand era um guardião do próprio tesouro. Aquele lugar era o Castelo da Fera em pleno Recife”, acrescenta.

“Era um mundo que misturava museu de arte e clínica de terapia. Particularmente, sempre permeei aquele ambiente em silêncio, num misto de respeito e tristeza. O ateliê não me parecia um parque de diversões. Era um templo”, relembra outro colega meu da escola, o engenheiro civil Ivan Rodrigo Ferreira da Cruz.

Inebriante, uma primeira visita à Oficina e suas esculturas de Palas Atenas, seus soldados fálicos e seus recônditos escuros no galpão incrustado na imensidão da Várzea pode proporcionar a um jovem observador uma sensação de perplexidade talvez maior que se estivesse diante da Pedra da Roseta ou da Vitória de Samotrácia.

Foi essa a minha impressão naquela manhã longínqua e em visitas posteriores, nas quais sempre me surpreendi pela adição incessante de novos elementos à Oficina, como a Accademia. Brennand jamais criou armas e nem tinha, até onde sei, qualquer dívida moral para acertar com o mundo. Mas a exemplo de Sarah Winchester, parecia guiado pela necessidade de ampliar indefinidamente os seus míticos domínios, como se construísse uma mansão sem fim.

Nunca mais voltei a encontrar Brennand depois daquele dia. Com sua saída de cena, aos 92 anos, estou ansioso para saber o que aguardará o público em seu santuário nos próximos anos, mas torço que a Oficina continue, por muitas gerações, a mesmerizar garotos como aqueles que éramos há mais de duas décadas.

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