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Enfim, quais os rumos da cultura? - parte 4 (final)

Alfredo Bertini
Economista e professor. É autor de Economia da Cultura (Ed. Saraiva, 2008). Foi secretário nacional do Audiovisual e de Infraestrutura Cultural, do Ministério da Cultura

Publicado em: 07/12/2019 03:00 Atualizado em: 08/12/2019 19:43

Nas três partes anteriores deste texto, fui muito mais economista do que propriamente gestor cultural. Naturalmente, que esse mix de experiências me ajudou na compreensão da engrenagem que move as produções culturais. Pude assim esboçar um diagnóstico técnico, cujo cerne maior foi dar-lhe o verniz de quem estima a relevância do valor econômico para a Cultura.

A partir desse ponto, tornou-se também essencial que agregasse à análise outras linhas de experiências. A vida me concedeu a oportunidade de vivenciar a própria dinâmica do fazer a Cultura, em especial, de empreendê-la, privada e publicamente. Assim, seria indispensável que meu papel de gestor cultural fosse incorporado na minha interpretação sobre os desafios da produção. Aqui, por um lado, valeu-me a experiência privada de ajudar a empreender um produto audiovisual de calendário. Dele extrai minha percepção do modo de produzir em ambiente privado. De outra parte, envolvi-me numa dupla experiência na gestão pública de âmbito nacional. Uma condição essa que me proporcionou uma visão setorial de largo espectro.

Dentro desse contexto de múltiplas percepções sobre o funcionamento do que chamo de mercados (assim mesmo, no plural, sem medo e preconceito), empenhei-me na contribuição propositiva, diante do embate eleitoral do ano passado.  O peso do cargo que então ocupava, face à sua capacidade de articulação política, permitiu-me chegar ao ponto em que esperava.

Já em março de 2018, a candidatura de Jair Bolsonaro emitia sinais de um provável êxito. Isso me motivou, entre outras razões que não cabem agora externá-las, a me aproximar da equipe econômica do candidato. Mais do que isso: em março, pela primeira vez, estava diante de Paulo Guedes, justo para defender essa visão econômica da Cultura. A partir dessa primeira agenda,  minha missão foi tentar retirar do setor o peso de um modelo de produção vigente já superado, que poderia levá-la a perda de status nos planos do Governo. Nesse sentido, justo diante de quem se desenhava como o responsável pela condução da Economia, nada mais oportuno que condicionar a Cultura ao viés econômico e dai, tecnicamente, afastá-la da provável situação de apêndice.

Em cerca de meia dúzia de reuniões com Guedes no Rio de Janeiro, a missão do esboço econômico estava não só traçada como sugerida. A proposta até que poderia passar pelo fim da exclusividade ministerial, mas a junção e o status da Cultura seriam preservados, pela força e pelo dinamismo do seu viés econômico. Foi proposto, então, um Ministério da Cultura, do Turismo e do Esporte, onde essas áreas fossem consideradas e valorizadas como “produtos econômicos”, no rastro da chamada “indústria do entretenimento”. Minha percepção foi constatar uma reação de anuência, pelo menos até o momento em que a transição política se sobrepôs ao esforço de consolidação técnica.

Na nova contextualização, após em campanha se ter argumentado o equívoco de tratar a Cultura exclusivamente pelo viés educacional (apesar de áreas remotas de típica formação), o vetor político terminou por validar uma proposta ainda mais alternativa - a de cidadania. A partir desse momento, a decisão permitiu gerar uma “despreocupação” com o papel do setor. Criou-se daí um perigoso sinal de alerta, uma espécie de “estado de vigilância”, quanto ao uso dos recursos públicos e à liberdade de se produzir conteúdos “inadequados” à “conduta moral” do núcleo que formula e executa as principais decisões de Governo.

Essa postura, que poderia ter sido amenizada por outras vias, sem se ferir a essência dos princípios do governo, acionou o “botão” dos conflitos entre os condutores da politica setorial e a chamada “classe artístico-cultural”. Mais preocupante do que a ausência de um mínimo diálogo entre as partes, justo pelos extremismos velados de ambos os agentes, fica a certeza de que o trato do viés econômico continuou à  margem. O governo não se propôs até agora a fazer seus ajustes dentro de uma percepção balizada, respaldada por informações confiáveis e construídas num cenário de transição real ao empreendedorismo. Nem a classe cultural se mostrou flexível, pois sequer se colocou à mercê do novo desafio fiscal do poder público. Opôs-se a negociar alguns parâmetros sobre o futuro dos incentivos e fundos que lhes garantem vitalidade, porque o componente ideológico de negar por negar qualquer pressuposto minimamente liberal, fala mais alto.

Por essa configuração, o quadro que se desenha não oferece sintomas que apontem para outra situação: a do equilíbrio político com o toque refinado e moderno do papel econômico para a Cultura. Nem mesmo o recente reenquadramento do setor, dessa vez como integrante do Turismo, disse para que veio. Foi outro “alarme falso”, com relação à visão econômica, por maior que possam ser construídas identidades entre esses dois setores. Sem dar à Cultura um protagonismo compartilhado e sem que os desafios da chamada Economia Criativa sejam assinalados, a decisão pela nova definição orgânica parece não ser nada mais do que a troca das letras e nomes nas paredes do Ministério.

Nesse cenário de “corda esticada”, não se enxerga sinais de trégua. Quando as partes radicalizam e não querem, não há fé, milagre e santo que ajudem a construir os rumos de outra realidade.

Assim, os desafios da Cultura se mantêm no imobilismo e à mercê de mais entendimentos: técnicos e políticos.

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