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Dando conta dos sentimentos: um novo paradigma

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
twitter: @RandsMauricio

Publicado em: 30/12/2019 03:00 Atualizado em: 30/12/2019 09:48

O conhecimento e a comunicação no mundo de hoje sujeitam-se a dois paradigmas que se contrapõem. Como expõe William Davies, da Universidade de Londres (Nervous states, 2018), por 350 anos prevaleceu um paradigma técnico-científico que proporcionava explicações de causa e efeito sobre os fenômenos naturais e sociais. Que eram gerados por centros como universidades, agências e imprensa. Sob o compromisso da objetividade.

Com o advento das grandes plataformas da internet, esse paradigma foi se deteriorando. Cedendo lugar a um outro em que os conteúdos passaram a ser gerados por bilhões de internautas. Cada postagem gerando informações armazenadas pelas grandes empresas que operam essas plataformas. E que fazem uso desse conteúdo, disponibilizando-o para finalidades comerciais e de controle político. Como os produtores desse conteúdo somos todos nós, neles deixamos imprimidos nossos medos, dores e anseios. Eles são expressão de sentimentos e emoções que passam a prevalecer sobre a necessidade humana de explicação racional dos fenômenos. Esse novo paradigma pode ser entendido a partir de mecanismos nervosos e emocionais que nos são inerentes. Que são objeto da neurociência. O acento nos sentimentos muda os ritmos, métodos e conteúdos das informações em circulação. Sobretudo numa conjuntura global em que grandes contingentes estão excluídos dos benefícios do progresso. E que se ressentem da desigualdade e da corrupção.

A esse paradigma não interessam os consensos fundados na verdade metodologicamente aferida. Todas as pessoas agora são geradoras de conteúdos que transmitem seus medos, ressentimentos, ansiedades e preconceitos. Sem perceber, elas se envolvem numa espécie de lógica de guerra. Eles contra nós. Para sobreviver, aniquilar o inimigo. Tudo ou nada. Não há espaço para compromissos. Muito menos para os guiados pela razão e pelos fatos observados cientificamente. De repente estamos imersos em todos os tipos de guerra. A guerra, que foi definida por Clausewitz (On War) como ‘a continuação da política por outros meios’, torna-se um estado permanente. A política passa a ser a continuação da guerra por outros meios. Fala-se de guerra contra o terror, guerra contra a crise climática, ‘cyber-war’, guerra cultural, guerra contra epidemias. A lógica da guerra, que já invadira o mundo dos negócios, passa a dominar também a política e as instituições.

Muitos não se contentam com esse distanciamento do paradigma técnico-científico. Percebem os riscos de um ambiente dominado apenas por sentimentos e emoções. Que pode descambar para um estágio quase ‘pré-hobbesiano’ em que as instituições se tornam impotentes para frear a guerra de todos contra todos por seus desejos, dores e medos. Como a concentração de poderes em plataformas como Google e Facebook produz riscos à democracia e às liberdades, muitos já advogam um outro paradigma para além daquele da manipulação dos sentimentos. Para Davies e outros, seria utópica e pueril a pura e simples tentativa de reafirmar em termos ainda mais fortes a verdade científica, suas instituições, regras e procedimentos consensuais. Como propõem Steven Pinker (Enlightenment Now, 2018) e Richard Dawkins (Outogrowing God, 2019), por exemplo. Para Davies, o paradigma científico anterior foi incapaz de satisfazer as necessidades e sentimentos das pessoas. Ao menos na velocidade e intensidade que elas esperam.

Avanços da neurociência mostram ser impossível isolar a função racional da função emocional no cérebro humano. No entanto, a ciência isolou-se das emoções para produzir um conhecimento objetivo. Distanciou-se das pessoas. Por isso, Davies propõe um novo paradigma em que as elites científicas, políticas e a mídia se reconectem com a dinâmica psicológica e cultural do grande público. Com suas necessidades e emoções como a busca da autoestima e o medo dos riscos à sobrevivência. Os experts precisarão admitir que não mais detêm o monopólio da descrição da natureza e da sociedade. E assumir posições em temas que mexem com os medos e os desejos das pessoas. Como a insegurança, a desigualdade, e a defesa do meio-ambiente, da paz e da diversidade. Ciência, política e cultura mais interligados e mutuamente se fortalecendo para construir instituições que possam superar as guerras culturais. Para que elas recuperem credibilidade. E para prevenir os riscos de uma super elite monopolizando todos os benefícios dos avanços tecnológicos. Dialogando com as pessoas a partir de suas emoções. Gerando ambiência para que as inverdades não prevaleçam.

Para isso, as instituições e suas políticas precisarão responder aos anseios de todos os segmentos. Não apenas daqueles de um grupo social hegemônico. Assumir uma comunhão de interesses que decorrem de sentimentos comuns a todos os seres humanos. Isso conduz ao desafio de unificar os diferentes movimentos sociais, ideológicos, identitários e nacionais que se organizam em torno de questões ou grupos sociais específicos.

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