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Crônica do mundo emasculado

Raimundo Carrero
Jornalista e membro da Academia Pernambucana de Letras
raimundocarrero@gmail.com

Publicado em: 16/12/2019 03:00 Atualizado em: 16/12/2019 09:43

O mundo anda, caminha, evolui ou não. O que é óbvio, não é? Nem precisa escrever. Quero escrever, no entanto, sobre Essa gente de  Chico Buarque de Holanda. O livro é longo, reflexivo, afetivo, afetivo?, sim, afetivo, escolho um breve episódio , mínimo, e creio que ele  acertou a mão. Estou falando de literatura. É claro. Porque na música faz tempo que ele acerta. Você pode até não concordar, mas é um extraordinário compositor. De verdade. Mesmo assim, pensava em ser sobretudo um poeta, dizem os jornais. .O que também o é, com grandeza. Na prosa apresenta altos e baixos, mas não deixa de ser notável. Sempre.  Grande escritor. Ficcionista, sempre tenho dificuldades para julgar. Por isso, nem sou mesmo um crítico literário. Posso ser, mas minhas dificuldades são evidentes.

Sempre leio com os olhos de ficcionista. E aí entra, com clareza, um pouco de competição. Um pouco é maneira de dizer. Mesmo assim procuro me distanciar. Ainda que seja só um pouco. Mesmo assim, há uma corrente que diz: o melhor crítico de um ficcionista é outro ficcionista. Nem sempre, acrescento. Prefiro os críticos de formação. Escritores que se dedicam, desde cedo, ao exame da obra literária. Prefiro a oficina porque exercito minha capacidade de fazer, de refletir sobre a criação.

Mas vamos parar com enrolada e fale do livro. Pois não. Essa Gente – título do livro –é uma longa reflexão sobre o Brasil e o Mundo através do diário do escritor Manuel Duarte, intercalado com opiniões, cartas , crônicas dos amigos, companheiros, vizinhos e vizinhas, diálogos e crônicas, sobretudo crônicas que questionam o País, os destinos do mundo, sem se deter em qualquer localidade, talvez Rio, talvez São Paulo, talvez Roma, talvez qualquer coisa. Não é só o Brasil que está em questão, mas o mundo. O mundão de meu Deus.

O que importa, decisivamente, é a narrativa – porque não é simplesmente um romance, uma novela, um conto, nem mesmo um diário convencional. Até porque tenho preocupações com o romance escrito em forma de diário, porque fecha o ângulo de reflexão em um só ponto de vista. É o autor monologando, digamos. Mas Chico não deixa que isso aconteça e recorre a cartas , bilhetes, impressões de outros personagens. Mesmo quando Duarte precisa ser fortemente criticado. Ou ironizado. Ou apenas comentado. E não é por acaso que o narrador Manuel Duarte tem um livro que se chama O Eunuco do Paço Real.

Quando quer refletir sobre a metáfora de um Mundo contemporâneo caprichosamente emasculado, sem forças e sem energia, sem coragem, deixando-se levar, seguindo, vivendo, ao que me parece, conclusão minha, pura crítica, o narrador irônico, forte, impiedoso, recorre a  esta anotação: “ A mãe mudou de emprego e proibiu o negrinho de ver o maestro. Pra prendê-lo em casa, meteu-lhe medo  dos porcos, contava histórias escabrosas . Ele cresceu acreditando que aqueles porcos, que andavam por ali à solta, comiam os bagos dos meninos no morro de Vidigal. Quando um dia acordou na casa do pastor com os curativos no lugar do  saco, não teve dúvida, foi o porco. Adulto, virou obeso como um porco, mas conserva aquela voz angelical”. É claro que pode ser exagero meu. Excesso de análise. Mas escolhi um pequeníssimo trecho  para refletir sobre o livro. Uma parte do todo. O livro é escrito com imenso afeto, o afeto crítico e irônico, todavia.

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