Diario de Pernambuco
Busca
Caridade e peixes

Ana Pontes
Professora da UFRPE. Doutora em Educação

Publicado em: 28/12/2019 03:00 Atualizado em: 28/12/2019 15:40

Matéria recente da GloboNews destacou que, no Brasil, pessoas mais pobres doam em dinheiro, proporcionalmente, três vezes mais do que pessoas mais ricas. Infelizmente, ainda estamos em 74º lugar na classificação mundial de solidariedade. Isso ocorre porque, quando consideramos doações em dinheiro e todas as classes sociais brasileiras, as mais altas influenciam negativamente o índice.

Não se trata, naturalmente, de reproduzir o maniqueísmo simplista repetido por muitas pessoas, de que pessoas ricas são más e pessoas pobres, potencialmente boas. Como o bom senso sinaliza, há boas e más pessoas em todas as classes.

Então por que o resultado desta pesquisa aponta esse resultado? Diversas hipóteses e situações similares podem demonstrar a lógica que ela segue. A principal delas, acredita-se, é o poder da empatia. Muitas pessoas, frequentemente as mesmas que creem que classes baixas têm direitos excessivos, querem natais de caridade, mas não justiça social.

Deixem-me dizer umas palavras sobre caridade: isolada, ela é uma relação assimétrica que reforça o poder de quem decide doar, que geralmente também julga do que o outro precisa, sem consultá-lo. Assim se reforçam dois pontos: a crença de que quem tem mais sabe mais do que o outro o que precisa ou merece e a convicção da própria bondade.

Está nesse cenário o rechaço por doar em dinheiro no Brasil. Doar esse “cheque em branco” pode ser desconfortável, porque dá ao outro liberdade de escolher como agir e usar o benefício.

Há quem malbarate recursos recebidos em doação? Certamente. Tanto quanto erram os “caridosos”, que muitas vezes não querem ir tão longe para desocupar seus armários ou projetam proezas de meritocracia ou empreendedorismo que eles mesmos jamais tiveram, mesmo em condições bem menos adversas.

Exemplo simples é a pressa pela vinda dos “Trapeiros de Emaús” para recolher itens quebrados, sem se perguntar como os voluntários lutam para obter o valor do combustível e manter os carros que buscam gratuitamente. Quantos doam dinheiro em gratidão por liberar sua casa para novos consumos?

Direitos e justiça social aumentam a autonomia e reduzem a “humildade” dos recebedores. Cabeça baixa e olhar de gratidão para alguns são condições indispensáveis para abrir o coração. Frequentemente são pessoas contrárias a direitos trabalhistas, mas a favor da distribuição de cestas básicas em sua comunidade religiosa.

Muitos dizem que cada um deve ir à luta. Não percebem, talvez, que muitas pessoas pobres doam mais exatamente porque, por força de empatia, caminharam, ainda que em ruas diferentes, nos apertados sapatos (ou na falta deles) de quem necessita. Aliás, percebo com relativa frequência que quem reclama de ensinar a pescar em vez de dar o peixe não é visto dando o pescado nem a aula.

Direitos sempre valerão mais do que meros atavios de pretensa bondade. Em 2020, questione a si mesmo sobre a qualidade, a quantidade e as mudanças reais que proporcionam suas doações materiais, de ações e de conhecimento. Pesquise entidades sérias com causas transformadoras que transcendam a caridade de ocasião. Faça mais; faça melhor. Comprometa-se a honrar o doador de peixes e as palavras em honra de quem você provavelmente ceou em 24 de dezembro. Presenteie-o com seu melhor, para quem mais precisa. E o Natal renascerá todos os meses.

MAIS NOTÍCIAS DO CANAL