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A permanência de Eni Ribeiro

Raimundo Carrero
Jornalista e membro da Academia Pernambucana de Letras
raimundocarrero@gmail.com

Publicado em: 30/12/2019 03:00 Atualizado em: 30/12/2019 09:46

Aqui está a prova da eficiência da Oficina de Criação Literária, que criei em 1988 para discutir, debater e refletir  a arte da prosa de ficção – conto, novela, romance – e revelar os segredos desta atividade apaixonante, que atrai leitores e aspirantes  a escritor. Chama-se Beleza e Permanência, e reúne a prosa de minha aluna Eni Ribeiro, numa brilhante edição da Cepe, com 550 páginas. Ela chegou à oficina em 1996 vinda de outra oficina, a de Lucila Nogueira.

Saúdo Eni Ribeiro não só pela beleza e permanência, mas sobretudo pela persistência, que só os verdadeiros artistas têm. Trabalha muito, trabalha sempre, trabalha permanentemente, mesmo quando não frequenta a oficina, lê, escreve, reescreve, descobre as falhas, reescreve-as, revê, refaz, não quer dizer que não erre. Todos os artistas erram, mesmo aqueles mais notáveis. Por isso, Flaubert escreveu duas versões de A educação sentimental em tempos diferentes. E Proust, que escreveu  ótimo ensaio para defender Flaubert da acusação de Saint Beuve de escrever mal, sobretudo por causa do imperfeito, dizendo, entre, outras coisas, que em Flaubert aquilo que era ação vira impressão, reconhece a necessidade de se reescrever um texto muitas vezes.

É claro que entendo o estilo de Kerouac, sobretudo de On the road, embora os estudos demonstrem que ele era nada espontâneo, e que alcançou aquele estilo aparentemente espontâneo depois de muito estudo, exercícios, repetições. Aquele que não quer estudar diz o que lhe vem à telha, como dizia meu pai. Havia a lenda de que escrevera o romance drogado durante 40 dias, num rolo de papel higiênico. Depois descobriu-se que não foi bem assim.

Kerouac passou tempos e tempos estudando até trocar correspondências com o amigo Neil Cassid, onde encontrou um texto muito espontâneo, voluntarioso, que lembrava uma conversa. A ideia já viera da leitura dos diários de Flaubert, que confessava ter realizado experiência análoga no capítulo X da segunda parte de Madame Bovary, criando o que chamou de diálogos entrecruzados, de forma a ouvir os ruídos de uma feira, mais do que descrevê-la. Uma revolução na linguagem.

Além disso gosto muito da obra de Conceição Evaristo, Mel Araújo e Giovanni Martins e de todos aqueles que escrevem pelo gosto de escrever, com estudos ou sem estudos. No plano da criação cada um faz o que quer, escreve como sabe e ninguém tem autoridade para dizer que está errado. Que não deve. Que não pode. São os chamados recursos próprios. Mas o caminho do aperfeiçoamento existe.

Os inimigos das oficinas se multiplicam. Mas muitos terminam beijando a lona. Hoje as oficinas se multiplicam aqui, ali, acolá. Em muitas salas, em muitos lugares. Mesmo para fazer o errado é preciso estudar. Nem todo mundo é Van Gogh, nem todo mundo é Kerouac...

Muitas vezes, ou na maioria das vezes, defendo até o erro gramatical, que entendo como a voz das ruas. Não é este o caso de Eni que escreve com elegância, correção e grandeza. E  assim justifica o trabalho da oficina e o meu trabalho, empenhado numa luta de horas e horas.

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