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Sobre a presunção da inocência

Inaldo Rocha Leitão
Advogado, ex-deputado e ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados

Publicado em: 29/11/2019 03:00 Atualizado em: 05/12/2019 14:25

A decisão do Supremo Tribunal Federal de declarar, por seis votos a cinco, constitucional o art. 283 do Código de Processo Penal gerou grandes debates e, a exemplo do que ocorreu na própria Corte, divergência de entendimento nos meios jurídicos, políticos e sociais. Acredito que o tema foi politizado por conta da prisão de figuras relevantes da República, sobretudo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nesse confronto de opiniões, muitos foram os que enveredaram pela abordagem de aspectos que nenhuma relação guarda com a temática, longe da ciência do direito.

Houve, inclusive em sede do próprio STF, quem argumentasse que o cumprimento da pena após condenação em segunda instância era necessário para evitar-se a prescrição da pena. “Quem pode contratar advogados caros são beneficiados pela prescrição penal, tantos são os recursos interpostos”, pontuaram. Ora, a responsabilidade pela razoável duração do processo, estampada no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal, é do órgão julgador, não do defensor. Quanto aos recursos interpostos, são previstos nas leis processuais, não no Estatuto da OAB.

Outro equívoco presente no debate é a afirmação de que a Suprema Corte decidiu que “a prisão do acusado somente será admitida após esgotados todos os recursos”. Na verdade, o que estava em debate era o cumprimento antecipado da pena, após condenação em segunda instância, e não a prisão, que continua podendo ocorrer nas modalidades de flagrante delito, temporária ou preventiva, que permanecem vigendo no sistema processual penal.

Proclamado o resultado do julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade 43, 44 e 54, senadores e deputados anunciaram que vão atuar para alterar a Constituição e estabelecer no texto a previsão do cumprimento da pena após condenação de réus em segunda instância, numa espécie de reforma da decisão do STF. Tal alteração se daria através de proposta de emenda à Constituição ou de projeto de lei, já em trâmite nas duas Casas do Congresso Nacional. A meu sentir, essa alteração é impossível de ser implementada pelos constituintes derivados.

Isto porque o art. 283 do CPP está em harmonia com o inciso LVII do art. 5º da Carta da República, razão pela qual foi acertadamente proclamado pelo STF como constitucional. A seu turno, o precitado dispositivo constitucional tem a seguinte dicção: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Com efeito, se a pessoa acusada ainda não foi considerada culpada, ante a ausência do trânsito em julgado, não pode cumprir pena. É tão claro o dispositivo que dispensa exercício hermenêutico. Aliás, norma constitucional não comporta interpretação extensiva – mas restritiva.

Nesta senda, cabe ressaltar que o inciso LVII do art. 5º da Lei das Leis está no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais e no Capítulo dos Direitos Individuais e Coletivos. Trata-se, pois, de uma cláusula pétrea, somente passível de abolição ou modificação pela via de Assembleia Constituinte, é dizer, pelo constituinte originário. O art. 60 da Constituição prever a hipótese de emenda ao texto, mas estabelece que não será objeto de deliberação a proposta tendente a abolir “os direitos e garantias individuais” (§ 4º, inciso IV).

Mercê da decisão do STF em fevereiro de 2016, no HC 126292, em que ficou assentado ser possível o cumprimento da pena após condenação em segunda instância, o entendimento na Corte, como na doutrina prevalente, sempre foi o de que todas as matérias elencadas no art. 5º da Lei Maior são cláusulas pétreas. Sendo assim, estamos falando de dispositivos constitucionais indevassáveis pelos constituintes derivados. Aliando-se a isto a recente decisão nas ADCs (retro), é correto afirmar que o legislador incorre em violação à Constituição que juraram defender e cumprir se aprovarem essa mudança.

Os parlamentares estão recorrendo ao contorcionismo legislativo para fazer essa alteração. No Senado, a PEC nº 5, de 2019, insere o inciso XVI no art. 93. As normas previstas nos incisos e alíneas deste artigo têm por finalidade organizar o funcionamento da estrutura judiciária (carreira, promoção, aposentadoria e subsídios de juízes), através de Lei Complementar de iniciativa do STF. Alguma relação com cumprimento de pena? Nenhuma! Já a PEC 410/2018, da Câmara, propõe alteração na redação do inciso LVII do art. 5º, que é, à evidência, cláusula pétrea. Outras iniciativas são ainda mais graves: propõem alterações no instituto da presunção da inocência pela via de projeto de lei ordinária.

Essa outra porta de saída para a tentativa dos parlamentares de não afrontar o inciso LVII do art. 5º é redefinir o conceito do trânsito em julgado. Esse instituto, direito fundamental dos acusados, garante o esgotamento de todos os recursos possíveis para que ocorra a execução da decisão judicial. Com efeito, é juridicamente impossível eliminar ou mesmo ignorar a interposição dos recursos previstos nos sistemas constitucional e processual ao Superior Tribunal de Justiça ou ao STF – recurso especial ou extraordinário, por exemplo.

O argumento mais comum a essas iniciativas legislativas é o de que quase todos os países do mundo permitem o cumprimento de pena após condenação em segunda ou primeira instâncias. No entanto, o que vale para nós é o que está escrito na nossa Constituição. E esta tem que ser cumprida, independente de pressões sociais ou movimentos políticos. Como disse o saudoso Ulysses Guimarães, ao promulgar a Constituição de 1988: “Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”.

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