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Que c'est triste Venise

Luzilá Gonçalves Ferreira
Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras
opiniao.pe@diariodepernambuco.com.br

Publicado em: 26/11/2019 03:00 Atualizado em: 05/12/2019 14:35

As imagens mostradas na telinha não chegam a surpreender: se grande parte do mundo vem sofrendo catástrofes semelhantes, como se pensar que uma cidade edificada dentro da água poderia escapar a um tal acontecimento,  que aliás já se repetiu há alguns anos. Mas a canção de Charles Aznavour, mesmo sem se referir a uma inundação, nos vem ao espírito, ante a visão da praça de São Marcos sem cafés nem turistas, com a igreja fechada. Para onde foram os pombos que cercavam e assediavam quem  lhes mostrasse nem que fosse um saquinho de milho, e que por várias vezes inscreveram nas lajes da praça , com seus corpos o nome Dio, ou outros? Veneza: as gôndolas desapareceram, e os vaporetti que faziam o transporte público rareiam. Dezenas de pessoas surpresas, incrédulas, contemplam no Rialto o movimento das águas, e o hotel Danieli, se bem me lembro, onde George Sand e Chopin abrigaram seus amores, fechou as portas. E todos o sabemos e nem é  preciso lembrar, insistir: os humanos estamos destruindo o mundo e daqui pra frente, se os gritos de alerta que começam a surgir um pouco aqui e ali, não se multiplicarem e se fizerem ouvir de modo contundente tais acontecimentos se repetirão de mal a pior. Mas uma bela imagem se sobrepõe a essas visões de Veneza: o belo filme que Luchino Visconti realizou há uns anos, a partir do não menos belo romance de Thomas Mann, Morte em Veneza, onde justamente morte e amor se presentificam na paixão de um artista já idoso, por um belo adolescente, que se compraz em fazer nascer no coração do tal senhor, o jogo da sedução, com gestos, poses, olhares insinuantes, com que a arte de Visconti enleia o espectador, como já o fizera o romance de Thomas Mann. O grande cineasta esbanja cenas de riqueza, luxo, despreocupação de uma alta burguesia em férias que finalmente é obrigada a reconhecer o poder da morte sobre suas vidas, na forma de uma epidemia ( cólera?) que obriga a necessidade da partida, esvazia o hotel e leva à morte o artista que insiste em permanecer nos lugare que viram nascer a paixão. Agora, essa outra visão de Veneza nos leva a imaginar o que foi perdido como parte do patrimônio artístico, os enormes gastos para recuperação de parte do que foi perdido,as perdas de ordem financeira para o que se ganhava com o turismo, para só lembrar alguns elementos da catástrofe. Veneza, amor e morte, a voz de Aznavour retoma a tristeza das perdas amorosas muito menos cruéis do que nos mostraram Mann e Visconti.

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